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Pharmácia Mamede - A primeira do Ceará

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Na foto, vemos o fundador Antônio Paes da Cunha Mamede posando em frente a sua farmácia em Fortaleza. A foto é provavelmente da inauguração.

AFarmácia Mamede foi fundada no Brasil em 08 de dezembro de 1829(Ver o próximo recorte de jornal) pelo farmacêutico Antônio Paes da Cunha Mamede, formado pela antiga Escola de Farmácia de Lisboa. O diploma de Antonio Paes foi assinado em 13 de setembro de 1827 pela então regente Izabel Maria. Foi considerado um dos melhores farmacêuticos de seu tempo, formou-se com apenas 18 anos.
Antonio Paes da Cunha Mamede, era filho de Francisco Antonio Mamede (31 de Março de 1782 - Sameice¹ /… 24 de Setembro de 1829 - Sameice) e de Anna Joaquina Paes da Cunha Mascarenhas Mamede (1786-1848). Nasceu em 01 de julho de 1809, Foi o primeiro Mamede a vir para o Brasil (que se tem registro). Antonio Paes foi o quarto filho de um total de quinze. Natural da Vila de Cameica, Portugal, estudou Farmácia no Convento de Santa Cruz em Coimbra, tendo depois se estabelecido em Vila Nova de Tazem

O Jornal A Razão de 1930, atesta a inauguração da farmácia em 1829.

Envolvido pela crise de 1828 e após a morte de seu pai Francisco Antonio Mamede em 1829, migrou para o Brasil, tendo chegado no dia 16 de março de 1829, instalando-se na capital da Paraíba, onde iniciou a vida profissional na indústria de artefatos Cipó, em sociedade com João José Saldanha Marinho. Casou-se com a pernambucana Joanna Deolinda de Mendonça, vindo no navio São Salvador para Fortaleza, chegando em março de 1842 e fixando residência. Em Fortaleza, inaugurou suaFarmácia Mamede, que abriu suas portas em 08 de Dezembro de 1842, na rua Barão do Rio Branco nº 13 (antigo). 
Em 1842 quando da obrigação da Declaração de Estrangeiro imposta pelo Código Criminal do Império, declarou na mesma ser natural de Cameica, que tinha a estatura regular, cor banca, cabelos estirados, olhos pequenos, nariz e boca regulares, barba cerrada e rosto comprido.  

Agradecimento: Márcio Mamede

Notas sobre a farmácia Mamede em jornais da época:


 









Fatos Históricos - Cronologia Ilustrada de Fortaleza deMiguel Ângelo de Azevedo (Nirez)

  • 08/dezembro/1842 - Surge em Fortaleza, a Farmácia Mamede, na Rua Barão do Rio Branco nº 13 (antigo), fundada por Francisco Antônio Mamede que depois pertenceria à Firma Mamede & Filho e depois a Mamede & Irmão



     

    • 18/fevereiro/1875 - A Farmácia Mamede, que na época era da firma Mamede & Filho, formada pelo farmacêutico Antônio Mamede e seu filho Catão Paes da Cunha Mamede (Catão Mamede), passa a pertencer à firma Mamede &Irmão, formada por Catão Paes da Cunha Mamede (Catão Mamede) e Antônio Paes da Cunha Mamede Júnior.


      • 14/abril/1914 - Morre em Fortaleza o farmacêutico Catão Paes da Cunha Mamede (Catão Mamede), ex-deputado e ex-vereador e arquiteto.Dirigiu, com seu irmão Antônio Paes da Cunha Mamede, a Farmácia Mamede.Era Paraibano nascido em 28/12/1829.Hoje é nome de rua na Aldeota

      ¹ Antiga freguesia portuguesa do concelho de Seia





      Memórias de menino - Dias de chuva na Vila São José

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      "Somente quando crescemos é que o tempo nos responde, o quanto pesa a responsabilidade em ser um chefe de família. Nesta estação chuvosa (não digo invernosa) o que o organismo pede é que durmamos um pouco mais, e na meninice nem sequer abríamos os olhos para o salutar e fraternoBom dia com a benção de Deus para aquele que cotidianamente sai entre os percalços da natureza, a fim de cumprir sua labuta obedecendo seu dever de consciência. 

      Em minha humilde casa de operário, só quem dormia nos quartos em separado, eram minhas quatro irmãs, porque o macharal era espalhado na casa com as redes nos compartimentos, e tendo que dividir um armador para dois punhos. Nove horas era o nosso café, mas mãe é mãe, e nos deixava à vontade. Ela já estava acordada desde cedo, para atender meu pai na saída. 
      Ainda sob à garoa, íamos para um típico lazer em dias de chuva. A areia tinha que está em volume e úmida, onde se lançava uma peça de arame grosso ou ferro trefilado ao chão fazendo riscados em que se encontravam os triângulos ou que picotasse um peixe que se desenhava. Exigia-se muita atenção e coordenação motora, senão o acidente era inevitável. Em alguma casa na Rua Maria Luíza, alguém era fã do Roberto Carlos, e as músicas eram:É Proibido Fumar, Brucutu, Minha História de Amor... 



      Hoje não se vê mais graça para essa brincadeira. O “Modernismo”, a televisão como escola de violência, as redes sociais desvirtua e muito o sentido, e com a inversão de valores as pessoas deixam de ser gente para ser contato ou coisa. Ninguém quer mais o olho no olho, corpo a corpo para o diálogo. A boa vizinhança foi acabada, e a televisão acabou dentro de casa. A brincadeira do ferrinho foi embora pro passado; todas as vezes que chove, minha mente salta para as castanholas da Avenidinha da via férrea que lá ainda estão. Os transeuntes pisam no local onde outrora foi palco de alegria e competição, em nossa dispensação da inocência. 
      Ao entardecer as arandelas da Coneforcom sua triste e amarelada luz incandescente eram ligadas e íamos para o jantar. O que nos fazia ainda permanecer na rua era a tomada de banho nas bicas, mas quando começava os trovões e relâmpagos nos recolhíamos. O único espetáculo existente nessa hora era sonoro, quando alguma composição ferroviária passava circulando a Vila. Ocorria o gemido dos pesados rodeiros do trem sobre o trilho molhado, naquela curva de 90 graus. O silencio era predominante na vila, afinal, o operariado é antagônico e prefere seu asilo. As chuvas fortes nos atemorizavam, mas sabendo que meu pai já estava em casa, a tranquilidade nos adormecia."

      Os homenageados nas ruas da cidade - Parte VIII

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      O jornalista, ex-vereador e ex-deputadoJoão Eduardo Torres Câmara (João Câmara), nasceu em Aquiraz, no dia 12 de dezembro de 1842.Fundou em 1895, o Almanaque da Cidade de Fortaleza, que a partir do ano seguinte seria Almanaque Administrativo, Estatístico, Mercantil, Industrial e Literário do Estado do Ceará, ou simplesmente Almanaque do Ceará.

      Faleceu em Fortaleza no dia 06 de outubro de 1906, aos 66 anos de idade. Após sua morte, o Almanaque do Ceará passa a ser editado por seu filho Sófocles Torres Câmara (Sófocles Câmara) até 1931, quando passou para Joaquim da Silveira Marinho, que em 1941 entregou à duplaRaimundo Girão eAntônio Martins Filho, passando em 1947 para A. Batista Fontenele e Leopoldo C. Fontenele, que o editou até 1961.
       

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      Ex-vereador e comerciante, Joaquim da Cunha Freirefoi o  primeiro e único Barão de Ibiapaba. Nasceu emCaucaia no dia 18 de outubro de 1827. 
      Era filho do português Felisberto Correia da Cunha e de Custódia Ribeiro da Cunha e irmão de Severiano Ribeiro da Cunha, o Visconde de Cauípe.

      Joaquim da Cunha foi presidente da província do Ceará por sete vezes: De 24 de abril a 26 de julho de 1869/ De 13 de dezembro de 1870 a 20 de janeiro de 1871/ De 26 de abril a 27 de junho de 1871/ De 8 a 12 de janeiro de 1872, em 30 de outubro de 1872/ De 12 de setembro a 13 de novembro de 1873 e de 21 de março a 23 de outubro de 1874.

      Casou-se com D. Maria Eugenia dos Santos. Dedicou-se a carreira comercial e soube acumular avultada fortuna, tendo colaborado para melhoramentos materiais de Fortaleza.
      O Barão de Ibiapaba morreu no Rio de Janeiro em 13 de outubro de 1907. 

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      Tristão de Alencar Araripe nasceu em Icó em 7 de outubro de 1821. Era filho do coronel Tristão Gonçalves de Alencar Araripe e de D. Ana Tristão de Araripe - intitulada, Ana "Triste". Foi casado com sua prima-irmã Argentina Franklin de Alencar Lima, com quem teve oito filhos, entre os quais, Argentina de Alencar Araripe, casada com João Tomé da Silva.

      Tristão de Alencar passou por diversos cargos públicos: Juiz municipal de Fortaleza, juiz de Direito de Bragança, na então Província do Pará,  juiz especial do Comércio de Recife, desembargador das Relações da então Província da Bahia e da Província de São Paulo e da Corte. Presidente do Rio Grande do Sul e da Província do Pará, ministro do Supremo Tribunal de Justiça, ministro da Justiça e da Fazenda (no governo de Deodoro da Fonseca), chefe de polícia na então Província do Espírito Santo (1856), Pernambuco (1858) e Ceará. Conselheiro de Estado; presidente das províncias do Rio Grande do Sul e da então província do Pará,  deputado da província do Ceará (em três legislaturas), oficial da Imperial Ordem da Rosa e Membro de inúmeras associações culturais dentre elas o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal permaneceu no cargo até a sua aposentadoria, em 25 de janeiro de 1892.

      Morre no Rio de Janeiro em 03 de junho de 1908, aos 86 anos de idade.
      Hoje é nome de rua no Centro de Fortaleza, indo até oBairro de Fátima, com o nome de Rua Conselheiro Tristão.

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      Dr. Paulino Nogueira Borges da Fonseca nasceu em Fortaleza, no dia 27 de fevereiro de 1842.
      Era filho de Francisco Xavier Nogueira e de Maria das Graças Nogueira. Neto pelo lado paterno de Pedro da Costa Moreira e de Maria Nunes de Lima e pelo lado materno do Capitão Antonio Borges da Fonseca e de Rosa Maria do Sacramento, do qual era bisneto materno de Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca, que governou o Ceará de 25 de abril de 1765 a 3 de novembro de 1781. Teve dez irmãos, dentre eles, o padre Francisco Xavier Nogueira, que foi presidente do Poder Legislativo no Ceará.

      Casou-se duas vezes. A primeira em 22 de dezembro de 1866, com Ana Franklin de Alencar, filha do tenente-coronel João Franklin de Lima e de Maria Brasilina de Alencar (tia materna de José de Alencar), com quem teve dois filhos:
      João Franklin de Alencar Nogueira (25 de outubro de 1867 - 2 de dezembro de 1947 - Engenheiro civil, historiador e escritor) e Maria Nogueira, falecida em 1869.

      Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Recife. Pouco depois foi nomeado promotor público de Saboeiro em substituição a Antônio Pinto Nogueira Acioli, cargo que deixou por ter sido escolhido pelo presidente Homem de Melo para ser oficial-mor da secretaria do governo, mas foi exonerado por Melo e Alvim, que sucedeu Homem de Melo, por divergências políticas. Voltou a fazer parte do governo provincial como secretário no governo do Barão de Taquari e no de Freitas Henriques. Exerceu os cargos de professor de Latim e diretor do Liceu de Fortaleza, inspetor geral da instrução pública, deputado geral por duas legislaturas (1872 e 1879) e vice-presidente da província, em cuja qualidade assumiu o governo provincial das mãos de João José Ferreira de Aguiar até o empossamento de Nogueira Accioli. Pelas reformas que realizou na instrução pública da província, foi condecorado com a Imperial Ordem de Cristo (1871).
      Faleceu em Fortaleza, aos 66 anos em 15 de junho de 1908.
        
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      Emília Freitas nasceu em 08 de janeiro de 1855 na antiga União, hojeJaguaruana. Foi uma intelectual engajada, inclusive na causa abolicionista. Sua obra foi permeada pelas suas visões políticas e questionamentos à sociedade, assim como a cultura que recebeu em seus estudos (Emília falava inglês e francês) e sua visão de Brasil (a autora morou em Fortaleza e em Manaus, cidades que ela usa com muita intimidade como cenários em seu livro A Rainha do Ignoto).
      Filha do tenente-coronel Antonio José de Freitas e de Maria de Jesus Freitas, após o falecimento do pai, a família resolve se mudar para Fortaleza, onde Emília estuda francês, inglês, geografia e aritmética, num colégio particular. Mais tarde se transfere para a Escola Normal, formando-se profesora.
      Em 1873 começa a colaborar em diversos jornais literários do Ceará como Libertador, Cearense e O lyrio e a brisa, além de outros de Belém do Pará. A maior parte dessas poesias foi depois compilada no volume intitulado Canções do lar.
      Um ano depois, após a morte da mãe, muda-se para Manaus em companhia de um irmão, exercendo o magistério no Instituto Benjamin Constant, destinado à instrução de meninos. Em 1900, casa-se e retorna ao seu estado original com o marido, o jornalista Antonio Vieira, redator do Jornal de Fortaleza



      Emília de Freitas participa ativamente da Sociedade das Cearenses Libertadoras, que tinha caráter abolicionista, tendo inclusive discursado em 1893 na tribuna, fato este muito aplaudido e noticiado nos jornais.

      Em 1899, sai A rainha do ignoto, sua principal obra, a que deu o curioso subtítulo de "romance psicológico". Trata-se de uma trama novelesca absolutamente insólita, marcada por traços ficcionais, que é considerada por alguns especialistas como um dos trabalhos pioneiros do gênero fantástico ou maravilhoso no Brasil. A autora consegue com rara habilidade acomodar o fantástico no plano da regionalidade e promove uma incursão pelo imaginário, chegando até o inverossímil.
      Com a morte do marido, Emília retorna para Manaus, onde falece em 18 de outubro de 1908
      , aos 23 anos de idade.


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      Antônio Fiúza de Pontes nasceu em Lavras no dia 14 de junho de 1876, filho de Antônio de Pontes Fiúza Lima e Maria Umbelina de Carvalho Pontes. Estudou em Aracati(curso de latim do Cônego João Francisco Pinheiro), Fortaleza (Instituto de Humanidades e Liceu do Ceará) e Recife (Faculdade de Direito, turma de 1902). Promotor Público de Monte Alegre e São Miguel do Guamá (PA). Professor da Faculdade Livre de Direito do Ceará. Deputado Estadual e poeta, pertenceu aoCentro Literário, não chegou a publicar os livros Miosótis e Tempos Idos. É de sua autoria a Memória Histórica da Faculdade Livre de Direito do Ceará (1907). 

      Em 19 de fevereiro de 1909, morre, aos 32 anos de idade, vítima de apendicite, em Fortaleza.




      Créditos: Cronologia Ilustrada de Fortaleza, Portal da História do Ceará, Wikipédia, Carta Capital, 1001 Cearenses Notáveis-F. Silva Nobre.

      Diploma perdido - Geraldo Duarte

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      Enfocamos, aqui, acontecimento registrado no início do ano sessenta, século passado. Novamente, lembrados com saudades, o engenheiro Clóvis de Araújo Janja e o mestre de obras Manuel do Montserrat. Trabalhos do Serviço de Abastecimento d’água, do Dnocs, no distrito de Messejana.

      Execução do projeto da rede abastecedora local, aprovado pela direção geral do Departamento. Na fase de assentamento das tubulações, fez-se verificado clamoroso erro técnico. Não havia projetado um ramal para atender ao hospital-maternidade. Dr. Clóvis Janja procurou o engenheiro seu chefe e do SAD, cientificando-lhe e requerendo providências para a correção. Nenhuma solução assomou. Em comentário e protesto, Montserrat externou:“Se eu fosse engenheiro, podia perder meu diploma, mas não ficava assim!”.

      Dia seguinte, Janja chamou o mestre e a mim e disse-nos: “Ontem, em casa, procurei por todos os lugares meu diploma e não achei! Cheguei à conclusão de que o perdi! Portanto, vamos utilizar os tubos da reserva técnica e fazer um desvio para a maternidade!”. Deu sonora gargalhada, acendeu um cigarro que sempre pendia na boca e determinou rápida ação. Inexistiu resposta aos ofícios visando à reparação. Aquele chefe, mesmo contrário à alteração, silenciou. A extensão foi executada por Montserrat e sua turma de campo, servindo aos socorridos naquela unidade de saúde pública. Sem dúvidas, até hoje, os encanamentos tubulares ainda permanecem enterrados na área.

      Quem sabe, Janja, Montserrat e os operários, de há muito moradores do Oriente Eterno, estejam a gargalhar com este artiguete...

      Geraldo Duarte 
      (Advogado, administrador e dicionarista)

      A Casa Veneza

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      Era 1º de agosto de 1924, quando é inaugurada em Fortaleza, a Casa Veneza, da firma Francisco Angelo & Irmãos, do comendador Francisco Di Francisco di Angelo, representante consular da Itália em Fortaleza, e seus irmãos Braz de Francisco di Angelo e Salvador Di Francisco di Angelo. A loja funcionava na rua Floriano Peixoto nº 136 (antigo, atual 452).

      Além do sortimento em calçados, as Casas Veneza também eram especialistas em bolsas e famosas por fazerem promoções como “Compre um e leve outro igual” ou em oferecer um passeio de barco. 

      Ao todo, a Casa Veneza teve três lojas, a matriz, que ficava na rua Major Facundo com rua Liberato Barroso, a loja da Barão do Rio Branco (onde funcionou a loja A Cearense) e outra loja na Praça José de Alencar.

      Arquivo Nirez


      O quebra-quebra de 1942


      No dia 18 de agosto de 1942, acontece o chamado quebra-quebra, em represália ao afundamento de vários navios mercantes brasileiros na costa brasileira, torpedeados por submarinos italianos e alemães.
      Estabelecimentos de alemães, italianos e japoneses são depredados, assaltados e incendiados pelo povo revoltado.

      Até estrangeiros que nada tinham a ver com o "eixo" foram "punidos" por terem nomes complicados.
      Na voragem foram incendiadas as lojas A Pernambucana, a Casa Veneza e a firma Paschen & Companhia.
      Durante a revolta popular, a Padaria Italiana muda seu nome para Padaria Nordestina.

      Casa Veneza de: 

      Francisco De Francisco Di Angelo

      Diz o texto: Francisco De Francisco* Di Angelo, acatado chefe da grande Casa Veneza e que tem conquistado a simpatia geral do povo cearense pelo seu alto descortino e excelentes qualidades de lídimo cavalheirismo, dando mostras iniludíveis de um cidadão cônscio dos seus desígnios na sociedade hodierna, com toda a honestidade que lhe tem caracterizado os seus atos, haja vista a retirada, há 2 anos passados do sócio João Batista Madeira, que foi embolsado dos seus lucros e capital, na maior cordialidade, demostrando assim o seu carácter sem jaça e que pode muito bem servir de exemplo a todos quantos o conhecem e admiram. 

      O comendador Francisco Ângelo, faleceu em Fortaleza em 09 de novembro de 1938.

      * No livro Cronologia Ilustrada de Fortaleza de Miguel Ângelo de Azevedo, o nome está assim grafado: Francisco De Francesco Di Angelo.
      Braz De Francisco Di Angelo

      Diz o textoBraz De Francisco Di Angelo, da seção de compras, moço que se tem imposto a admiração dos súbditos deste estado nortista, sem distinção de classe, não só pela sua amabilidade com que trata a todos os seus amigos numa expansão de ânimos, afim de adquirir a máxima afluência à Casa Veneza, mas também pela correção nos seus negócios, dando um atestado eloquente na prática do desenvolvimento no comércio.

      Salvador De Francisco Di Angelo

      Diz o texto: Salvador De Francisco Di Angelo, encarregado da seção de vendas, onde tem firmado os seus propósitos de verdadeiro financista, fazendo inúmeras economias em benefício da Casa Veneza, atraindo assim amplas admirações dos seus co-sócios e da avultada soma da freguesia da dita casa, que lhe deve um padrão de glórias conquistando unicamente pelo seu esforço e invejável apetição para o cargo que lhe foi confiado.

      Reclames da Casa Veneza ao passar dos anos



















      "...Era assim o comércio de calçados em Fortaleza, nos idos de 45. Uma dúzia de sapatarias, todas de pequeno porte, calçavam os pés da população de nossa pequenina capital, de apenas duzentas mil pessoas.

      As opções de modelos não eram tantas como hoje, não posso afirmar que fossem mais bonitos, uma coisa, porém, é certa: eram sapatos feitos para durar muito, para enfrentar o sol e a chuva. Havia muita camurça, combinações de camurça e pelica, camurça e gorgorão, verniz e camurça, fivelas, laços, saltos grossos, muito altos, inclusive, as famosas "plataformas" Carmen Miranda.

      Algumas dessas casas sobreviveram, algumas até cresceram muito. Outras, morreram, definitivamente, deixando, nos saudosos, só uma grande nostalgia dos tempos em que até uma pequena sapataria tinha charme, porque a cidade era bela e romântica, cultivando a elegância até nas mínimas coisas." 
      Marciano Lopes

      O carinho dos cearenses pelo italiano Francisco Ângelo:



      A loja da rua Major Facundo com Liberato Barroso. 
      A foto é de 1983, de  Nelson Bezerra:

      Prédio da rua Barão do Rio Branco nº1068, ainda com o nome da antiga Casa Veneza, onde antes esteve a loja A Cearense. O prédio é do arquiteto Sylvio Ekman:
      Foto de  Felipe Camilo em 2013


      O prédio na época da A Cearense



      Créditos: Nirez, Portal da História do Ceará, Biblioteca Nacional, Royal Briar de Marciano Lopes e pesquisas pela internet.

      As lojas na Fortaleza da década de 40

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      Nos idos da década de 40, os proprietários das grandes lojas não se preocupavam em camuflar (ainda bem!) as fachadas das lojas, com vergonha de estarem ocupando prédios antigos, nem tinham, ainda, descoberto a técnica de rebaixar os tetos dos salões, diminuindo o pé-direito dos mesmos e diminuindo, também, consequentemente, a ventilação. Os donos e administradores das lojas de Fortaleza preocupavam-se, principalmente, em apresentar mercadorias de alta qualidade, vendedores educados e asseados e vitrinas de alto nível, melhor veículo promotor de vendas. 
      Hoje, infelizmente, quase não se consegue observar os antigos prédios ocupados pelas lojas, visto a quantidade de tapumes que são usados para encobrir o "velho". :(



      Naqueles tempos, sem as indústrias de confecções dos nossos dias, que oferecem ao cliente a roupa prontinha, ao gosto de cada um, predominava, na cidade, o comércio de tecidos, obrigando as pessoas a adquirirem as fazendas necessitadas e levá-las à costureira ou alfaiates, conforme o caso ou o sexo. Por isso, as lojas de tecidos ou casas de fazendas, como eram mais conhecidas, tinham esmero em suas vitrinas, caprichavam nos "vestidos" de suas bonecas-manequins que eram montadas por verdadeiros mestres na arte de modelar as roupas, usando apenas o tecido e alguns alfinetes, sem ser necessário cortar pano nem utilizar linha ou agulha. 
      A Casa Plácido, do comerciante milionário Plácido de Carvalho, na rua Major Facundo, ao lado do Excelsior Hotel. Comerciava produtos europeus: tecidos, confecções masculinas e femininas, perfumes, móveis, luminárias, leques, louças, cristais e pratarias. Durante a Primeira Grande Guerra, quando a Europa ficou carente de tudo, Plácido, que tinha armazéns abarrotados, revendeu tudo o que o velho mundo necessitava. A preços elevadíssimos.

      A expressão Casa, certamente, seria a influência francesa Maison. Quanto à denominação armazém, tão grosseira e desprovida de it só surgiu na década seguinte, quando a cidade começou a perder seu encanto, seu refinamento, seu "chiquê", consequência das violentas secas que se abateram sobre o sertão, despejando milhares de flagelados famintos em nossa capital, originando as favelas, a profusão de mendigos, gerando, enfim, uma nova condição social que  modificou, radicalmente, os costumes da nossa urbe.
      Loja A Cearense na rua Barão do Rio Branco. Arquivo Nirez

      As principais casas de tecidos na Fortaleza dos anos 40 eram: A Cearense, de Aprígio Coelho de Araújo, localizada no meio do Chamado Quarteirão Sucesso, na rua Barão do Rio Branco. Aprígio, homem de larga visão e de muito bom gosto, mandou construir sua loja inspirado nas grandes maisonsparisienses: gigantesco salão, bastante requintado, com ambientes de espera e nichos iluminados para exposições de peças finas. Ao fundo, uma elegante escada em  forma de leque se bifurcava e dava acesso aos salões dos dois andares superiores que tinham imensas rodas vazadas como visores emoldurados por belos gradis de ferro. De linhas art déco, como era comum às lojas chiques daquele tempo, sua frente era rigorosamente simétrica, com duas vastas vitrinas laterais e muitos manequins artisticamente vestidos.
      Uma loja que, embora bem menor em instalações, possuía, talvez mercê de seu nome, incrível fascínio na cidade, era a Broadway, de Alberto Bardawill, na esquina famosa das ruas Major Facundo e Guilherme Rocha. Tinha duas vitrinas, uma em cada rua e era o próprio Bardawill quem montava as vitrinas e"vestia" as bonecas-manequins. A casa não tinha maiores atrativos em decoração, porém só trabalhava com tecidos de alta classe e sua clientela, a exemplo de A Cearense, era de primeira linha. Sua fama maior veio do forte vento que soprava constantemente na sua esquina, levantando as saias das moças e  provocando ajuntamento de rapazes, o que deu origem ao epíteto de "esquina do pecado". Aquele vento seria originado pelos altos tapumes da construção do Cine São Luiz que não permitiam a sua passagem pelas galerias laterais obstruídas.
      A loja tinha o slogan: “Rianil, a loja azul da Floriano Peixoto”

      A Rianil, localizada na rua Floriano Peixoto, entre as travessas São Paulo e Pará, tinha, sem favor, as mais bem arquitetadas vitrinas de tecidos da cidade. Seu vitrinista, verdadeiro artista, fazia trabalhos maravilhosos com as fazendas e as bonecas-manequins. Estas,  eram tão bem "vestidas" que se podia jurar que eram vestidos de verdade, cortados e costurados. Essa loja era toda azul, devido ao nome Rianil, originado de rio Anil, no Maranhão, em cuja capital, São Luís, estava a matriz daquela loja.
      A Ceará Chic, no extremo sul da Praça do Ferreira, também tinha vitrinas bem elaboradas, com bonecas muito bem vestidas, e só trabalhava com fazendas de alta qualidade. A sua  vizinha, Rainha da Moda, na esquina e defronte ao Cine Moderno, também vendia tecidos, embora fosse especializada, igualmente, em bolsas, sombrinhas e outros acessórios.


      Na esquina das ruas Barão do Rio Branco e Guilherme Rocha ficava As Duas Américas, de Pedro Coelho de Araújo, irmão de Aprígio (já citado). Não era uma loja de luxo, mas era bastante simpática. Tinha apenas uma vitrina, na quina. Não possuía manequins, que eram detalhes de alto requinte naqueles tempos. Já na década de 50, mudou de ramo, passando a ser casa de merendas, para fazer concorrência à Sorveteria Variedades. Com o nome de Cabana fez sucesso durante vários anos, sempre do mesmo proprietário da loja As Duas Américas.

      Reclames de 1932 no Jornal Nação

      A Casa Ouvidor localizava-se na rua Floriano Peixoto, vizinha à Livraria Comercial. Era uma loja simples, não tinha vitrinas, apenas uma só boneca-manequim colocada sobre um balcão.


      Na rua Major Facundo, quase esquina com atravessa Liberato Barroso, tinha a Casa Londres, outra loja sem maiores pretensões, não obstante o nome pomposo. Não tinha vitrinas nem manequins.

      Curiosa era a Casa Vênus, na rua Floriano Peixoto, local atualmente ocupado pelo Edifício Sul América. Era uma loja de porte médio e o seu detalhe interessante era uma boneca-manequim que ficava numa das duas vitrinas.  
      Esse manequim chamava tanto a atenção do escritor, que ele escreveu:"Eu tinha fascínio pela mesma, pois, sendo menino, ficava a contemplá-la, uma vez que nunca vira, antes, manequim daquele tamanho.
      Teria, se muito, meio metro de altura e formas de mulher, linda, com olhos azuis, de vidro. Estava sempre de vestido novo, na moda. Parece que o dono daquela loja tinha carinho especial por ela. Nunca mais vi outra peça semelhante, em nenhuma das cidades por onde andei."

      A Granfina também ficava no Quarteirão Sucesso, no local onde está, atualmente, a Casa Pio. Era uma loja feia e sem qualquer atrativo, malcuidada, mal arrumada e de aparência suja. Tinha estoque reduzidíssimo de mercadorias e, para piorar a imagem, exibia um horroroso manequim,"choroso" e extremamente "anêmico". Nunca se via qualquer cliente ali e acho que fechou por falência. Sua vizinha era a Casa Armênia, de seu Carlos Fermanian, genitor do genial músico e regente Vasquen Fermanian. A Loja era um pouco melhor do que A Granfina, porém, sem ser chic, sem ter atrativos.

      A esquina do pecado

      De linha bem popular, mas badaladíssimas, eram as Casas Novas, de Gutemberg Telles. Se não estou enganado, eram três lojas, localizadas nas ruas Major Facundo e Floriano Peixoto, na confluência dos Correios e Telégrafos. Patrocinavam o programa de José Limaverde"Coisas que o tempo levou", apresentado pela PRE-9, nas noites das segundas-feira. Seu proprietário tinha noções da moderna propaganda, usava faixas e panfletos, além de "pregões" nas calçadas, atraindo os fregueses para o interior das lojas.

      Ao lado do prédio dos Correios e Telégrafos, na rua Floriano Peixoto, estava a Casablanca, outra loja de linha popular e muito procurada pois tinha fama de vender mais barato do que as concorrentes. Possuía grandes instalações, sem o mínimo de luxo, mas apresentava movimento constante. De todas as lojas de tecidos existentes na década de 40, foi a única que sobreviveu. Cresceu e formou uma cadeia de lojas, grande centro comercial na Aldeota e já envereda por outros ramos de atividades, prova do dinamismo e tenacidade de seus dirigentes.

      Casa Blanca - A sobrevivente

      Com exceção da Casablanca, as lojas da década de 40 fecharam suas portas e hoje constam apenas em alguns livros sobre a cidade amada e nas histórias dos mais velhos...

      "Todas as demais lojas dos meus tempos de menino e adolescente desapareceram e, hoje, são apenas saudade. Algumas, pelo chic, pelo carisma que possuíam, outras, pela simpatia e singeleza de suas promoções de vendas, numa época em que a publicidade era puro artesanato, sem as sofisticações do marketing de hoje." 

      Marciano Lopes




      Créditos: Livro Royal Briar - Marciano Lopes/Portal da História do Ceará/Biblioteca Nacional/Arquivo Nirez/ Revista Bataclan 

      Raimundo Varão - Figura excêntrica que fez parte do cotidiano de Fortaleza

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      Em Fortaleza, durante os anos de 1911 e 1915, viveu um homem estranho, que ninguém sabia de onde tinha vindo, se do Rio de Janeiro, Piauí ou São Paulo*. De acordo com as beatas da época, que juravam de mãos postas, aquela criatura só podia ter emergido dos quintos dos Infernos. O poeta Otacílio de Azevedono seu livro “Fortaleza Descalça”, assim o descreveu: “… era alto, magérrimo, perfil grego, sobrancelhas espessas e juntas, olhos fundos e profundos com olheiras cor de azinhavre. (…) Possuía uma particularidade interessante: tinha seis dedos em cada mão, o que lhe aumentava o misterioso aspecto e talvez justificasse o seu comportamento esdrúxulo. (…) Um sentimento de repulsa dele me afastava e me fazia temê-lo, como se ele fosse um monstro daquelas antigas histórias de Trancoso”
      Esse ser estranho, era ninguém mais, ninguém menos, que Raimundo Varão, tido como o mais excêntrico dos artistas cearenses. Era poeta e desenhista, tendo trabalhado no estúdio de fotografia do dinamarquês Niels Olsen.
      Os cronistas do início do século XX, contam que o poeta não era nenhum pouco higiênico, mas lavava as mãos sempre que pegava em um livro. E que mesmo andando sujo e mal asseado, seus livros eram todos impecáveis, não possuindo um risco sequer, muito menos uma mancha em seu interior ou capa. 

      A pensão onde o poeta Raimundo Varão morava, ficava na Rua Formosa, atual Barão do Rio Branco.

      De acordo com o contista, cronista e poeta bissexto Newton Silva, Raimundo Varão parece que não se importava com a alcunha de filho do diabo ou que era o próprio diabo em pessoa, visto que ele próprio contribuía para aumentar os mexericos e falatórios em torno de si. E os boatos aumentavam a cada dia. Ateu, só usava roupas pretas, era extremamente pálido como um vampiro, não tomava banho, praticamente não comia nada além de cerveja com bolachas, tinha um odor fétido de defunto e de acordo com a "boca miúda", ainda criava na pensão em que morava, um sapo amarelo com o qual conversava e trocava carícias. Tudo isso, era sem dúvida, ótimos motivos para as bocas ávidas de histórias mirabolantes dos fofoqueiros daquela época. Certa feita, depois de uma interminável noite de bebedeira, o enigmático poeta terminou a farra na Praia Formosa (hojePraia de Iracema), em meio a uma tempestade com raios e trovões. Raimundo Varão não se intimidou e berrava ensandecido aos Céus que Deus provasse a sua existência mandando um raio que o partisse ao meio, causando arrepios nos companheiros de boemia. 


      A praia Formosa, palco das farras do poeta. Aqui um registro da praia nos anos 40. 
      Arquivo Nacional


      Varão adoecia frequentemente de fulminantes e efêmeros amores, paixões platônicas e arrebatadoras. Varava a noite insone a entoar cânticos febris para as moças recatadas e ingênuas dos sobrados. Os pais apavorados se apressavam a esconder as filhas, pois o diabo estava à solta e não dormia. O infame tinha uma predileção pela inocência das imagens das santas da Igreja Católica. Dizia que todas as santas eram belas e a candura de suas mãozinhas postas arrebatava o sacrílego. Apaixonou-se perdidamente pela imagem de Santa Teresa de Jesus que vira em uma igreja de Fortaleza e para ela deixou escrito o seguinte poema: 

      Teresa de Jesus, lírio da Espanha 
      A casta luz de teu olhar magoado 
      Só me desperta a fantasia estranha 
      Das misérias da carne e do pecado; 
      Por ti, no fundo d’alma se me entranha 
      Não sei que o amor brutal de alucinado… 

      Vem do bando falaz das ilusões 
      A despertar-me os lúbricos anseios. 
      (possam curar-me d’alma as podridões 
      teus olhos imortais de sonhos cheios) 
      Surgindo dentre inúmeras visões 
      O alabastro divino dos teus seios… 

      Santa ou louca? O que foste não importa, 
      Pois nada importa quando o amor brutal 
      Nos dilacera, nos domina e corta 
      Como a lâmina fria de um punhal; 
      E mais se a nossa alma se conforta 
      Nas venenosas brotações do mal? 

      Ó poetisa gentil de membros lassos, 
      Nesses loucos acessos de histerismo, 
      Como deviam ser os teus abraços 
      Repassados de doce magnetismo… 
      Por ti, meu coração feito em pedaços 
      Havia de rolar no eterno abismo! 

      Se tu vivesses hoje e os meus desejos 
      Pudesse saciar no amor profundo, 
      A volúpia infernal dos nossos beijos 
      Abrasaria o coração do mundo… 


      O poeta, historiador e membro da Academia Cearense de Letras, Juarez Leitão, escreveu sobre o "diabo" que havia morado na Capital cearense para a Revista Singular. Dono de uma fluência imaginativa de narrador de causos, o poeta foi rápido na ação de pesquisador da memória fortalezense:

       “Nas minhas entrevistas com as pessoas de idade, tentando reconstituir a memória oral da cidade, encontrei em três ou quatro ocasiões, referências a um homem que era o diabo. Essas alusões partiam de octogenários, geralmente mulheres, que antecediam seus relatos com um “meu pai contava” ou“minha mãe falava”. Eram lembranças terríveis, vindas da infância, sobre um homem estranho que aparecera em Fortaleza, todo de preto, com seis dedos em cada mão, que tinha parte com o diabo. Essa assustadora figura misturava-se a manjaléus e bichos-papões no afã terrorista das mães e babás de outrora para fazerem as crianças dormir mais cedo ou para que comessem os mingaus e papinhas sem demora. 



      Sempre que ouvi referências à estranha figura do homem de seis dedos, ligava-as ao depoimento do poeta Otacílio de Azevedo em Fortaleza Descalça” sobre Raimundo Varão: “Era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas espessas e juntas, olhos fundos, com olheiras cor de azinhavre. (...)”. Varão era um artista, poeta primoroso. Trabalhava na Fotografia Olsen, tendo como colegas de trabalho os irmãos Júlio e Otacílio de Azevedo e Herman Lima, que depois seria contista famoso e memorialista. 
      Raimundo Varão marcou Fortaleza no começo do século XX por seu comportamento estranho e original e aqui produziu sua arte. Se o povo falava que ele era o diabo, ou seu missionário nesta terra, era porque o próprio Varão contribuía para isso. Imaginem um sujeito alto numa terra de baixinhos, olhos fundos, olheiras roxas, extremamente pálido, vivendo sem tomar banho e, além do mais, criando um sapo?! O soturno personagem praticamente não comia. A roupa acabava-se no corpo, e o fato de ser preta disfarçava-lhe a sujeira. Não o odor. Fedia, alguns diziam que a enxofre, que é o cheiro de satã. Tinha o comportamento daqueles poetas do ultra-romantismo, vivendo paixões unilaterais e arrebatadoras por musas inalcançáveis. Possuído da contradição dos desesperados, falava assim para uma delas: Anjo, mulher, demônio a quem venero, sombra que amaldiçoo e que bendigo, Luz dos meus olhos, infernal perigo, Causa de meu eterno desespero. 
      O poeta viveu em Fortaleza entre 1911 e 1915. Dizem que foi embora para o Rio de Janeiro. De onde vivia mandou, tempos depois, para ser publicado na imprensa do Ceará, um belo soneto sobre Fortaleza. Era a saudade desta boa terra onde até os mefistofélicos se dão bem”.  

      Soneto sobre Fortaleza (Raimundo Varão):

      Lá, sob um claro céu de azul-turquesa, 
      Onde o sol seu tesouro em luz descerra, 
      Lá fulge a legendária Fortaleza, 
      Como um raro brilhante sobre a Terra. 

      Como um sacro penhor da Natureza, 
      Como um beijo auroral que a vida encerra, 
      Longínqua e bela, a lânguida princesa, 
      Arfando o peito, geme e os olhos cerra. 

      Porque nos batem temporais medonhos 
      E tivemos no mundo a mesma sorte, 
      Ó casta Fortaleza dos meus sonhos,
      Meu derradeiro e desvelado anseio 
      É ter a paz na comunhão da Morte, 
      Dormindo em sete palmos do teu seio...

      *Dolor Barreira escreveu: "Raimundo Varão não era cearense, mas natural do Piauí, segundo estou informado."
      Otacílio de Azevedo, porém, costumava dizer que ele era paulista, o que era confirmado por Luís de Castro.
      Importante salientar que, Dolor Barreira, com seu admirável senso de justiça, compreendeu que, não obstante o fato de haver nascido fora do Ceará, tendo mesmo vivido aqui durante poucos anos, Raimundo Varão pode e deve figurar na história de nossas letras, razão por que fez questão de reunir, em sua História da Literatura Cearense, o maior número possível de composições de sua autoria. 


      Revista Singular/ Jornal da Besta Fubana/ Newton Silva / BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense. Fortaleza, A. Batista Fontenele, v. 3, 1954, p. 45.

      Raimundo Varão - Por Otacílio de Azevedo

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      O primeiro emprego que arranjei em Fortaleza foi na Fotografia N. Olsen, na rua Formosa (hoje Barão do RioBranco), onde aprendi a lidar com o afamado papel albuminado, a base de ouro, no qual copiava retratos à luz do sol, com cinquenta e tantas prensas, correndo o risco de, caso se queimasse alguma por excesso de exposição, ser descontado, seu valor, dos miseráveis sessenta mil réis que percebia por mês... 
      Ali trabalhei com Júlio Azevedo, meu irmão, Augusto Cabral, musicista, Herman Lima, que desenhava para o Tico-Tico o seu gozado João Balabrega e começava a escrever contos e Raimundo Varão, uma das personalidades mais originais que tenho conhecido, e a quem dedico esta crônica. 
      Varão era alto, magro, perfil grego, sobrancelhas emendadas, olhos fundos e olheiras cor de zinabre. O rosto, muito branco, era um mapa-múndi de veias azuladas; exalava um insuportável mau cheiro, devido ao fato de não tomar banho e deixar que a camisa se acabasse, suja, pregada ao corpo. Dentro dessa imundície, porém, existia um grande poeta que, nas horas de folga, lavava cuidadosamente as mãos, de seis dedos cada uma, e com zelo folheava os livros mais limpos deste mundo, sem, lhes dobrar uma página e nem mesmo riscá-los com seu nome, para não lhes macular a alvura. 
      No dia em que não respondesse ao nosso bom dia, podíamos ficar certos de que passaria um mês sem falar com ninguém...


      Postal da rua Major Facundo no início do século XX. Vemos a Estrela do Oriente onde Otacílio foi comprar a camisa para Raimundo Varão. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz

      Conta-se que criava, num recanto escuro de quintal, dentro de um barril, um asqueroso sapo cor de bronze, que era o seu ídolo. Acariciava-o e, dizem, até o beijava! 
      Um sábado, correu como um arrepio a notícia de que "seu" Raimundo ia tomar um banho no domingo. É que, pela primeira vez, se apaixonara! 


      Fui a seu mandado comprar, na "Estrela do Oriente", uma camisa branca, de peito duro, colarinho, e mais uma gravata de seda, um par de abotoaduras, chapéu de palhinha de arroz, lenços e um vidro de perfume estrangeiro. Tinha vindo da "Alfaiataria Amâncio" um belíssimo terno de casimira cinzenta. Varão havia também comprado um par de sapatos Bordalo, meias, ceroulas até os calcanhares, ligas, etc. 
      Meu primeiro cuidado, no domingo, foi assistir ao seu anunciado banho, apenas com a curiosidade de ver-lhe os seis dedos em cada pé... Mas saí frustrado, pois os seus pés eram iguaizinhos aos meus! 
      Aconteceu, porém, que eu havia combinado com ele comermos uma carne seca, assada no álcool, com farinha d'água e cebolas, e o pobrezinho quase morria em consequência disso, porque seu único alimento era bolachinhas Jacó e cerveja... 
      Foi uma semana que passou doente. Quando ficou bom, meteu-se na roupa nova e rumou para o Passeio Público, onde já o esperava ela, com o mais terno dos sorrisos... 


      Passeio Público, local de encontro do Varão e sua musa. Em destaque a estátua de Prometeu em mármore. Acervo Carlos Augusto Rocha Cruz

      Varão amava... E esse amor lhe modificou por completo a vida: ria, cantava, e brincava conosco. É desse tempo e inspirado pela amada esse magnífico soneto que intitulou "Mademoiselle Ibis": 


      Quando a vejo passar, franzina e leve, 
      mais delicada e frágil que as verbenas, 
      penso que aquele traje ocultar deve 
      a rainha grácil das açucenas. 

      Lírios, pérolas, lânguidas falenas, 
      rubis, Papoulas, flóculos de neve,
      vêm nos trazer um fraco esboço apenas 
      do conjunto ideal da boca breve... 


      Dos seus olhos, mais puros que as estrelas, 
      a luz auroreal nos vêm falando 
      de cousas que é impossível concebê-las... 

      E quando passa, a rir, entre cortejos, 
      parece uma ilusão que vai boiando 
      num oceano de sonhos e desejos! 

      Passados meses, Raimundo Varão, já desiludido talvez daquele amor que lhe fora efêmero, desabafando a revolta de seu coração angustiado, cheio de desilusões, escrevia estes poemas decassílabos: 


      UM SONETO D' AMOR 

      Anjo, mulher, demônio a quem venero, 
      sombra que amaldiçoo e que bendigo, 
      luz de meus olhos, infernal perigo, 
      causa de meu eterno desespero! 

      Se procuro esquecer-te é que mais quero 
      dar-te em minh'alma sacrossanto abrigo, 
      e concentrando as lágrimas comigo 
      as minhas próprias carnes dilacero... 

      Do meu profundo amor sempre a falar-te 
      encontrarás o espectro solitário 
      disperso, a soluçar por toda a parte! 

      E se em teu peito a compaixão não medra, 
      eu irei pela senda do calvário 
      arrancando um soluço a cada pedra! 

      ALUCINADO 

      Ardendo em chamas de infernal cratera, 
      ao ver-te o corpo escultural, divino, 
      sinto rugir-me n'alma uma pantera 
      que ladra contra Deus e o meu destino... 

      Tu és a flor em plena primavera 
      eu sou o mendigo, o verme pequenino... 
      Deixa rolar no abismo da quimera 
      a paixão deste amor, que não domino. 

      Vive, mulher, e sê feliz! - Um dia, 
      quando houveres baixado à campa fria, 
      na febre dos desejos indomados, 

      irei partindo o mármore das lousas,
      visitar o mistério em que repousas
      para beijar-te... os ossas descarnados!

      Quando Raimundo Varão publicou o seu poema A Morte da Águia fomos eu, ele e Matos Girão, numa clara noite de luar, à Ponte Metálica. Varão, quando terminou a declamação de seu poema, com estes versos:

      O poeta é como a águia, anseia o infinito,
      o olhar na luz da ideia eternamente fito,
      desdenha o mundo vil e a existência ilusória,

      e voa e cai e morre olhando o sol da glória



      Disse, emocionado: "Ó mar, tu, que guardas tantas pérolas no teu seio de esmeralda, acolhe mais esta no teu valioso escrí­nio!" - E atirou, num gesto de entusiasmo, o poema que acabara de ler, às ondas inquietas, que o acolheram... 

      Não tivesse eu me agarrado com unhas e dentes com o Girão e teria ele ido buscá-lo num mergulho em que talvez houvesse desaparecido para todo o sempre. 
      Não sabemos por que Varão, tão grande nos seus versos, foi um nome que se apagou, mesmo no Ceará, onde militou durante tantos anos, entre os maiores da terra. Questão de sorte? "Falta de estrela", como diz o vulgo? Dolor Barreira dedicou-lhe várias páginas em sua admirável História da Literatura Cearense, mas ainda assim podemos dizer que o poeta deA Morte da Águia é um desconhecido nas letras cearenses. Herman Lima, que foi seu contemporâneo na Fotografia N.Olsen, esqueceu, inexplicavelmente, o poeta em seu livro de memórias. 



      Raimundo Varão sempre andava com as mãos para trás, segurando um grande Atlas Geográfico, cousa que nunca estudou . De tanto sentar-se em cima dele já lhe havia apagado quase todas as letras da capa. Certo dia, descobrimos que aquele livro apenas resguardava dos olhares curiosos os fundilhos de sua única e velha calça, em petição de miséria... 

      Certa vez Varão estava revelando uma porção de retratos na viragem de ouro quando descobri que ele, com os olhos pregados no teto, deixava, sem o sentir, as provas todas serem devoradas pela ação corrosiva do revelador! Todas as provas haviam desaparecido! 

      Não sei se devido à minha pouca idade, naquele tempo, ou se pela excentricidade do poeta, eu lhe queria muito bem, mas um movimento de repulsão me afastava dele e me fazia temê-lo como se ele fosse uma cousa diabólica, um monstro desses das antigas histórias de Trancoso, que tantas vezes ouvi, aterrorizado, quando criança. 
      No entanto, quando lia para mim os seus versos, eu perdia todo aquele pavor, e o meu medo se transformava em piedade, ou em submissa adoração. Na verdade sempre o admirei como a um deus, algo divino, que houvesse caído de um astro, de uma estrela. Achava-o diferente dos outros, respeitava-o como a um ente superior, que vivesse à parte, alheio a todas as baixezas do mundo, dentro da galera de um sonho! Uma pessoa estranha, arrancada às Mil e Uma Noites, fluídica, incorpórea, mas que na terra fosse tomando a forma extraordinária de um ídolo pagão de alguma seita diferente de todas as outras religiões, diante do qual só nos cabia um direito: dobrar os joelhos e lhe beijar o pó das sandálias... 
      Não sei de poeta, em Fortaleza, que fizesse sonetos mais lindos do que os de Varão. Vejamos mais este, ainda inspirado pela Mademoiselle Ibis: 


      VISÃO NOTURNA 

      Espairecendo incauta e descuidada 
      à fraca luz da lâmpada indecisa, 
      a cada passo um raio de alvorada 
      ilumina o lugar onde ela pisa... 

      Na mórbida indolência que desliza 
      a sua forma clássica, esmerada, 
      lembra um cisne de luar que se eteriza 
      no mar de luz da esfera constelada. 

      Pasmam ao vê-la as lâmpadas esguias 
      fazendo recordar dos grandes sábios 
      as cavernosas órbitas sombrias...

      E as suas frases dúlcidas, singelas, 
      cada palavra que lhe sai dos lábios, 
      vou transcrevendo em sílabas de estrelas! 

      Além desta, são inúmeras as poesias que escreveu naquele tempo e que eu decorei para recitar nos serões então em voga, quando ainda não existia o rádio e o sentimento expressivo tinha grande valor. 
      Nada mais belo do que um lindo poema declamado ao som embalador da melodiosa Dalila ou de uma valsa lenta, em chorosa surdina... 
      Fui para o interior do Ceará, e na minha ausência Raimundo Varão foi embora, parece-me que para o Rio de Janeiro, e de lá, saudoso, escreveu e enviou para ser publicado aqui este belíssimo soneto, um dos mais belos que inspirou nossa cidade: 


      FORTALEZA 

      Lá, sob um claro céu de azul-turquesa, 
      Onde o sol seu tesouro em luz descerra, 
      Lá fulge a legendária Fortaleza, 
      Como um raro brilhante sobre a Terra. 

      Como um sacro penhor da Natureza, 
      Como um beijo auroral que a vida encerra, 
      Longínqua e bela, a lânguida princesa, 
      Arfando o peito, geme e os olhos cerra. 

      Porque nos batem temporais medonhos 
      E tivemos no mundo a mesma sorte, 
      Ó casta Fortaleza dos meus sonhos,
      Meu derradeiro e desvelado anseio 
      É ter a paz na comunhão da Morte, 
      Dormindo em sete palmos do teu seio...



      Otacílio Ferreira de Azevedo nasceu na cidade de Redenção, Ceará, em 11 de fevereiro de 1896 e faleceu em Fortaleza no dia 3 de abril de 1978, aos 82 anos de idade. Autodidata, com boa formação intelectual, foi poeta lírico, pintor, fotógrafo e jornalista. Como pintor possui bons quadros, muitos dos quais enriquecem galerias do Ceará, do Brasil e de Londres.

      Sobre sua poesia, Raimundo Girão comenta que "é flagrante o seu talento po­ético, traduzido em versos de dolorido lirismo, como que na linguagem mesma do poeta - cantando a minha angústia indefinida, purificando a minha própria mágoa."
      Publicou as seguintes obras: Dentro do passado, 1916; Alma ansiosa, 1918, 2ª ed. 1955; Musa risonha, 1920; Sugestão ao luar, 1921; Réstia de sol, 1942, 2ª ed. 1967; Redenção, 1944; Desolação, 1947; Últimos poemas, 1958; A origem da lua, 1960; Adá­gios, meizinhas e superstições (poesias), 1966, Trigo sem joio, 1986; e Fortaleza descalça1992, uma memória histórica de nossa cidade.
      Ingressou na Academia Cearense de Letras no dia 21 de fevereiro de 1969 quando foi saudado pelo acadêmico Jáder de Carvalho. Ocupou a vaga deixada por Andrade Furtado, cadeira número 26, cujo patrono é o filólogo Manuel Soares da Silva Bezerra


      Crédito: Academia Cearense de Letras - Livro Fortaleza Descalça/1992.


      Herman Lima - Sânzio de Azevedo

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      "No dia 21 de junho deste ano de 1981, apenas um mês e dez dias depois de haver completado 84 anos de idade (nascido que fora em 11 de maio de 1897), faleceu no Rio de Janeiro o escritor Herman Lima, sem dúvida um dos maiores nomes que, de nossa terra, têm saído para projetar-se no cenário da literatura nacional. Nascido no Meireles, em Fortaleza, diante de um mar que povoaria algumas páginas de sua ficção, cultivou o desenho antes de dedicar-se às letras, chegando a publicar charges, capas e historietas em revistas cariocas de larga circulação, na primeira década do século. Mas já nesse tempo, trabalhando na Fotografia N. Olsen, começava a entusiasmar-se com as narrativas de João doNorte, pseudônimo de Gustavo Barroso. Otacílio de Azevedo, meu pai, numa página de reminiscências, ao contar como entrou para aquele estabelecimento, por volta de 1912, como copiador de retratos, evoca: Já lá estava, empregado, um rapazola de olhos vivos e grandes, muito inteligente, às voltas com exemplares das revistas O Malho e Tico-Tico, das quais era colaborador, escrevendo e ilustrando. Na figura principal das historietas que publicava pôs o nome de João Balabrega, seguindo o exemplo de Angelo Agostini, que fazia as célebres aventuras do Zé Caipora. Esse moço era Herman Lima¹
      Graças ao prestígio de Antônio Sales, recém-chegado do Rio, onde vivera cerca de 20 anos, seria publicado, em 1917 ou 18, na revista Fon-Fon!, o conto Gata Borralheira, o primeiro conto de Herman estampado num periódico da então Capital Federal. Essa narrativa, como outras saídas de sua pena por essa época, versava tema ligado à vida dos pescadores, figuras bem familiares ao ficcionista que se iniciava. Ele mesmo confessaria que, ao pensar em novas estórias, esbarrava num problema dos mais graves: seu total desconhecimento do sertão... Foi então que se incorporou a uma comissão que trataria da construção de uma estrada de rodagem de Aracatia Quixadá, passando por Morada Nova. Admitido como feitor de campo, passaria ele quase dois anos no sertão jaguaribano, no meio dos vastos carnaubais, convivendo com a população interiorana, e podendo, então, ver de perto as paisagens tostadas pela seca ou banhadas pelo inverno. Daí por diante poderia transformar em literatura tipos e cenas de sua própria experiência. 

      Depois desse fecundo estágio nos sertões cearenses, onde encontrou a matéria-prima da maioria de seus contos, transferiu-se Herman Lima para a Bahia, em 1922, a fim de cursar Medicina, levando prontos os originais de Tigipió, livro que, editado em Salvador, mereceria a consagração da crítica, um prêmio da Academia Brasileira de Letras e, pelos anos afora, várias edições no Rio de Janeiro. Em 1928 publicou A Mãe-d'Água, de contos e crônicas. Formado em Medicina, transferiu-se o escritor para o Rio em 1931, publicando no ano seguinte o romance Garimpos, cujo enredo se passa na Bahia. Escreveu dois livros de viagens (Na Ilha de John Bull, 1941 e Outros Céus, Outros Mares, 1942, e uma monumental História da Caricatura no Brasil, 1963), em quatro volumes, que lhe custou 20 anos de trabalho. Seus méritos como teórico do conto ficaram evidenciados nas Variações Sobre o Conto (1952), e conhecidos seus dotes de fino cronista com as Imagens do Ceará(1959), onde já se prenuncia o admirável memorialista de Poeira do Tempo (1967). E ainda temos o crítico, autor de excelentes estudos sobre Afonso Arinos, Domingos Olímpio, Coelho Neto, Aluízio Azevedo, Olegário Mariano, Rachel deQueiroz e outros vultos de nossas letras. Sem nos deter na síntese notável que são as citadas Variações Sobre o Conto, que mereceram calorosos elogios de Alceu Amoroso Lima e de Lúcia Miguel-Pereira, assinalo aqui de passagem a segurança da observação crítica deste trecho, à propósito da protagonista do romance Luzia-Homem: Na fixação dessa figura, Domingos Olímpio teve mão de mestre sem descaídas. Nenhum traço lhe falta, a partir da hora em que Luzia nos aparece, através da anotação assombrada do francês Paul: ''Passou por mim uma mulher extraordinária, carregando uma parede na cabeça." Em todos os seus atos exteriores, como na forte carnação dos membros poderosos, a que não era alheia, porém, nenhuma das graças mais feiticeiras da sua condição de mulher, Luzia, em todas as suas reações emocionais, não trai jamais o seu sexo. A partir da terceira edição (a de 1932), Tigipió foi refundido, sendo a ele incorporados três contos de A Mãe-d'Água (Os Caboclos, As Mulheres e A Mãe-d'Água), e um inédito, O Arrieiro, ficando assim 13 narrativas das melhores que tem produzido o regionalismo na literatura. E de tal modo atingiu à perfeição com seu livro de estréia, que, se não houvesse publicado mais nada, ainda assim Herman Lima teria seu nome consagrado, razão por que dele disse Braga Montenegro: "Talvez ele e Gustavo Barroso sejam os representantes mais autorizados do conto regionalista entre nós, em qualquer época." Por sua vez, Moreira Campos, em artigo escrito por ocasião da morte do escritor, afirmou, com sua autoridade de grande contista (um dos maiores não só do Ceará, mas doBrasil), após referir-se à admiração de Herman Lima por Anton Tchecov: "Ele próprio, Herman, era um mestre do gênero, pela realização e pelo conhecimento sobre a matéria." Alguns contos de Tigipió são páginas soberbas, dignas de qualquer antologia do gênero; seja no clima fantástico de Sereias, no anedótico de As Guabirabas, ou no trágico de Alma Bárbara, em todas as narrativas sentimos o pulso do verdadeiro ficcionista. É interessante observar o final imprevisto de alguns contos: em O Arrieiro, ouvimos a narração de um engenheiro da Inspetoria das Secas. Tendo de viajar léguas e léguas com 100 contos de réis, dão-lhe por companheiro de jornada o Mariano, caboclo de torvo aspecto, que andava sempre com um enorme punhal. Cada vez confiando menos no caboclo, o engenheiro o surpreende mexendo na valise do dinheiro; mas Mariano, já com o pacote de notas nas mãos, solta um riso mordaz e diz: "O dinheiro fica melhor comigo, doutor."Daí por diante, tudo indica que o caboclo vai terminar tentando matar o engenheiro, em plena mata. Em certo pouso, o narrador do caso é vencido pelo sono, apesar do pavor que sente. Acorda no dia seguinte. terminando assim o conto: Junto a mim, um sorriso amável, inteiramente novo, como eu nunca lhe vira, a aclarar-lhe a face, todo envolto na auréola de ouro que o sol nascente lhe armava por trás da figura esguia, o Mariano, apoiado ao punho da minha rede, sacudindo-a de leve, convidando-me alegremente: - Vam'embora, doutor! 'Stá na hora da gente largar! Em outro, Ventura Alheia, temos a estória de dois irmãos que desde pequenos eram amigos de uma menina da vizinhança, Isabel: Justino, belo e cheio de saúde, e Damião, raquítico e extremamente feio. Com o passar dos anos, Isabel, já moça, cada vez mais se aproxima de Justino, à proporção que se afasta de Damião, que sofre com o desprezo. Uma noite, tendo viajado o irmão, deixa Damião próximo à vereda uma armadilha, com uma forquilha, uma espingarda e um cordão, a fim de surpreender uma onça. Em casa, porém, soube da volta de Justino, e correu, para evitar que o irmão, ao passar pela vereda, de volta da casa da moça, para onde tinha ido, fosse vitimado pelo tiro. Mas, ao se agachar para desfazer a armadilha, viu dois vultos abraçados, e reconheceu o irmão e a namorada. Chorando de dor, ficou muito tempo a olhá-los. Mas Justino despediu-se da moça. E o conto finda com este parágrafo impressionante: Então, de repente, num pulo feroz, o rapaz precipitou-se para a arma carregada, calcou com força na forquilha de trás, que a sustinha, alçou mais o cano, até pô-lo à altura de visar um homem. E, tudo pronto, - o cordel esticado, os gatilhos abertos, prestes a bater, - agachado, ao pé do mato cauteloso e sinistro como uma sombra maldita, Damião atirou-se a correr pela vereda em fora, como um doido, soluçando de dor e de ódio.  

      Jornal O POVO publicado em 04/01/2000 (Clique para ampliar).

      No imprevisto de O Arrieiro desfaz-se o que tudo indicava dever terminar numa tragédia: Mariano, apesar do aspecto feroz e de seu imenso punhal, era de fato homem de confiança. Em Ventura Alheia, a tragédia é que constitui o imprevisto: Damião não desejava a morte do irmão, tanto assim que correu para desarmar o engenho mortal; mas a cena dos dois namorados juntos despertou-lhe o ciúme; mostrando-lhe toda a extensão de sua desgraça ... Quanto à presença da paisagem cearense na obra de Herman Lima, vale a pena lembrar o que sobre Tigipió escreveu Humberto de Campos: O que mais caracteriza este livro é ( .. . ) a paixão da gleba, o amor intenso do autor pela terra mártir em que nasceu. Eu conheço o Ceará, algumas centenas de léguas dos seus sertões e das suas serras, percorridas no rigor das secas ou sob a bênção dos invernos abundantes. E confesso que nenhum escritor do Nordeste me deu, jamais, impressão mais viva, nem mais justa, das paisagens que eu vi e das regiões que visitei. Com efeito, só no conto que abre o livro e lhe dá a título, há sugestivos trechos retratando cenas vivas e verdadeiras da seca e do inverno em nossa terra. Há descrição como esta: No cimo das galhadas, sobre o carnaubal cinéreo, gralham periquitos famintos, grasnam maracanãs, jandaias, coricas e anuns-pretos. Somem-se as águas dos poços, putrefeitas. Nas fazendas, principia então a labuta horrível de escavar a terra ardente, em procura da gota salvadora que o solo insaciável a mais e mais vai sugando. Ou com esta outra, onde é bem diversa a paisagem: Três dias depois da segunda chuva, de todos os pontos da terra exsicada espantam os brotos verdes da babugem. Os troncos negros, que pareciam mortos, vestem-se de folhedos tenros, esmeráldicos. No cimo das galhadas, nos juremais primeiro, surge uma folhagem verde-gaio, tão leve e tão tênue, como bocados plúmeos de nuvens verdes, tombados sobre a mata. Nos baixios alagados estendem-se as águas claras das lagoas, como outros pedaços do céu, onde em breve se estrelará a floração branca do muçambê. Como não poderia deixar de acontecer, o poder verbal do ficcionista está presente nas páginas sentidas de seu livro de memórias, Poeira do tempo: para dar apenas um exemplo, e dos mais eloquentes, basta o capítulo O Primeiro Amigo, onde é evocada a figura de José Nogueira, assassinado a tiros em frente ao Clube dos Diários, em 1914. Depois de falar do amigo e da tragédia que o vitimou, abalando Fortaleza, revela o escritor que, quase 25 anos mais tarde, no Rio de Janeiro, no velho casarão do Tesouro, onde trabalhava, num local que ele expressivamente descreve como urna "sala sempre escura, por mais que fosse meio-dia", alguém o procurara, em busca de um papel de seu interesse e ao identificar-se, "deixou cair o nome do assassino de José Nogueira"

      José Nogueira e o Clube dos Diários, local do crime.

      Reproduzo na íntegra o final desse capítulo: Por um momento, na sala silenciosa e lôbrega, foi como se tivesse havido um tiro. Instintivamente me retraí, dum modo que não poderia ter passado despercebido a ele. É que o papel que eu tinha debaixo dos olhos, sobre a mesa, como que se transmudara de repente naquelas mesmas finas roupas do rapazinho morto de Fortaleza, o paletó chamuscado de balas, a camisa numa papa de sangue, que eu vira uma vez, como prova do processo do crime, com que se fora aquela vida, tirada pelas mesmas mãos que agora se estendam para mim, sinistras e ao meu parecer ameaçadoras, como as dum fantasma do passado vindicativo. Posso dizer que nasci ouvindo o nome de Herman Lima, tantas vezes o pronunciou meu Pai, rememorando os tempos remotos da Fotografia N. Olsen. Mais tarde, pude admirar-lhe a obra literária e compreender a importância de seu papel no panorama de nossas letras. Mas foi só em 1974 que pude conhecê-lo pessoalmente, em sua última vinda a Fortaleza, quando fomos visitá-lo, no Meireles, meu Pai e eu, levados pela mão amiga de Braga Montenegro. Podia eu ver de perto um dos maiores vultos da literatura de nossa terra. Alto e anguloso, aquele homem de quase 80 anos de idade, que deixara o Ceará havia mais de meio século, nada tinha de baiano, nem de carioca, nem de cosmopolita: era um puro cearense, ora assumindo ares de matuto encabulado, ora entusiasmando-se com o relato de fatos ligados à sua vida de escritor, ora desfazendo-se em risos ao evocar as peripécias de sua juventude ... Depois, estive com ele algumas vezes no Rio, em 1976 e 77, em sua casa do Jardim Botânico ou em reuniões na biblioteca de Plínio Doyle. E sempre, por mais que derivássemos a conversa para outros assuntos, terminávamos falando do Ceará, principalmente do Ceará de seu tempo, que era também o da iniciação de meu pai nos caminhos da literatura. Eram conversas agradáveis mas ao mesmo tempo tristes, porque molhadas de saudade. Da segunda vez que me demorei no Rio, em 1979 e 80, sabendo que o escritor estava enfermo, e que cada vez mais se tornava precária sua saúde, confesso não ter tido coragem de visitá-lo. Ademais, já então meu pai havia passado para o outro lado da vida, e mais tristes teriam sido as nossas conversas sobre esse tempo que não foi o meu, mas que sempre me pareceu tão familiar... Herdeiro direto do Realismo, Herman Lima, com a obra que deixou, não é nome que possa jamais ser esquecido: ficcionista, cronista, crítico, memorialista e também tradutor, sua obra mereceu elogios de nomes como João Grave, Agrippino Grieco, Humberto de Campos, Carlos Chiacchio, Medeiros e Albuquerque, M. Cavalcante Proença, Manuel Bandeira, Gustavo Barroso, Antônio Sales, Mário Linhares, Dolor Barreira e Braga Montenegro, para citar apenas alguns escritores que, como ele, já empreenderam a Grande Viagem. Com a morte de Herman Lima, a cuja memória a AcademiaCearense de Letras rende homenagem, não é exagero afirmar que se encerra todo um capítulo da história."


       • Sânzio de Azevedo 


      ¹literária do Ceará e do Brasil. 1 AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza Descalça. Fortaleza, Edições UFC, 1980, p. 245

      Crédito: Academia Cearense de Letras/ Relendo Herman Lima - Sânzio de Azevedo

      O dia que descobri Fortaleza - Especial Fortaleza 291 anos

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      "Descobri Fortaleza aos nove anos de idade, precisamente no dia 27 de agosto de 1945, quando vim de Beberibe, tangido pela tragédia que foi a morte de meu pai.
      Lembro demais, era uma linda e ensolarada manhã de segunda-feira. Tão linda era aquela manhã, plena de sol, que amei, de pronto, esta cidade, apesar do estado de quase torpor em que me encontrava, em virtude do passamento de meu genitor, cuja missa de sétimo dia ocorrera no dia anterior.

      Fui morar na parte mais aristocrática da avenida do Imperador, com seus bangalôs e casarões nobres, suas amplas calçadas e seus majestosos oitizeiros.
      O percurso entre a parada do ônibus, na praça dos Voluntários, e a casa de meus familiares, foi de surpresas sucessivas. Embora Fortaleza daquele tempo fosse uma encantadora província, se comparada à minha pequenina e inocente Beberibe, me parecia uma metrópole. Algo como deixar Fortaleza, agora, e chegar a Nova York. Encantavam-me os prédios altos, as lojas bonitas e suas vitrinas, as ruas movimentadas, os carros, o barulho ensurdecedor dos bondes, a elegância das pessoas, as residências chiques.

      Avenida do Imperador, vendo-se ao fundo o casarão de Thomaz Pompeu. 
      Acervo pessoal de Sérgio Roberto

      Naqueles dias, a população de Fortaleza, de cerca de duzentos mil habitantes, assim como as populações de todos os quadrantes do mundo, vivia, ainda, a euforia pelo término daSegunda Guerra Mundial, daí o clima de festa, a alegria que parecia estar em cada face, em cada sorriso.

      Ideal Clube meados dos anos 40

      Talvez por ser tão pequena e tão singela, Fortaleza, na metade da década de 40, era uma cidade com ares aristocráticos, tinha pudores de donzela, não obstante ser tão francesa no seu aculturamento. A França determinara a formação das senhorinhas de boa estirpe, assim como comandava a moda, o padrão das lojas e de suas artísticas vitrinas, a vida social que acontecia no Clube Iracema(foto ao lado), no Clube dos Diários e noIdeal Clube. Por isso, era chic, na Fortaleza daqueles tempos idos, prendadas donzelas conversando em francês e tocando piano, nos fins de tarde, nas senhoriais moradias do centro da cidade.

      Clube dos Diários funcionando no Palacete Guarani e sua diretoria na década de 40.

      Como chic era assistir à sessão das sete e meia do Cine Diogo, fazer compras na Casa Sloper, ver vitrinas da Casa Parente, merendar no O Jangadeiro ou no Eldorado, ter, na sala, uma ampliação colorida da Aba Film, usar perfumePromessa, encomendar chapéus às Irmãs Almeida, frisar os cabelos na Madame Santinha, comprar tecidos finos na A Cearense ou na Broadway e, aos domingos, assistir à missa das oito, na Capela das Missionárias, na Avenida Rui Barbosa.
      Em agosto de 1945, com o término da guerra e a debandada dos soldados americanos, as "coca-colas" estavam em recesso, mas, ainda faziam sucesso, principalmente, a estonteante Cyres Braga, que chamava as atenções gerais quando desfilava, pelas ruas do Centro, com seu andar ondulado e seu olhar de mormaço.
      As damas de fino trato usavam peças de bronze e alabastro para ornamentar suas casas, não dispensavam os cristais da Boêmia, as baixelas de prata, os abajures com cúpulas de pergaminho legítimo, os aparelhos de jantar, em faiança"castelo azul", de origem chinesa, via Inglaterra.

      Os americanos na sede da Uso (Estoril) com as Coca-Colas na década de 40. 
      Acervo Castro Cascais

      Fortaleza, nos idos de 45, compunha-se, além do Centro, que era comercial e residencial, de poucos bairros e, consequentemente, de poucas linhas de bondes e de ônibus. A vida era pacata. Nas calçadas das residências, à noite, formavam-se as chamadas rodas de calçadas com papos os mais variados e as reuniões iam noite adentro. As ruas, muito limpas, eram pavimentadas a paralelepípedos, a pedras toscas e a concreto. As praças eram ajardinadas, fartamente arborizadas, convidando ao repouso e aos folguedos os idosos e as crianças. Havia segurança, não se ouvia a palavra assalto, e ladrões, havia os de galinha. Podia-se andar,  despreocupadamente, a qualquer hora do dia ou da noite, em todos os quadrantes da cidade, sem o menor receio.


      Praça General Tibúrcio (Praça dos Leões) em registro dos anos 40.

      Não havia exploração nem carestia e os preços das mercadorias, principalmente dos chamados"secos e molhados", passavam até ano sem serem majorados.
      Também a moda era duradoura. Roupas, sapatos e chapéus eram usados até a saturação. Não havia técnicos de marketing determinando que a moda tinha de ser efêmera e mudar, continuamente,  para agradar os industriais têxteis, os fabricantes de calçados, os chapeleiros. Não havia, ainda, a indústria da confecção, todo mundo era obrigado a comprar os tecidos e procurar os alfaiates ou as costureiras.

      A elegância dos homens na Fortaleza antiga. Na foto, vemos João Clímaco Bezerra, Mozart S. Aderaldo, Edval Távora e Chico Novaes, na Praça do Ferreira em 1946.

      Os homens usavam ternos de linho irlandês de dia e,  de casimira inglesa, à noite. Os bem talhados ternos eram feitos pelos mestres alfaiates, instalados, regra geral, na rua Guilherme Rocha, entre as ruas Barão do Rio Branco e General Sampaio. As mulheres usavam muita seda francesa, com estampas florais sobre fundo negro; musselinas para os vestidos de noite, muito laço, muito drapeado, fivela,"apanhados", fricotes. Os sapatos eram, quase sempre, combinados de pelica e camurça, abertos, de preferência e, não raro, os ditos "plataforma", inspirados em Carmen Miranda. As luvas, indispensáveis até para as compras no mercado, do mesmo jeito que o chapéu. Os decotes eram discretos, as saias desciam até esconderem as batatas das pernas, envoltas em meias de seda."


      Continua...

      E você, quando descobriu a sua Fortaleza?


      Fonte: Livro Royal Briar

      Avenida do Imperador - Especial Fortaleza 291 anos

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      Praça da Lagoinha, destaque para a avenida do Imperador. 

      Nos  idos de 45, aavenida do Imperador era uma espécie de porta de entrada para o aristocrático bairro de Jacarecanga. Com suas largas calçadas, sua pavimentação de pedras toscas, seus frondosos e elegantes oitizeiros, era para o memorialista e escritor Marciano Lopes, a sua Via Veneto, Avenue Foch e Fifth Avenue. Suas casas são diferentes, portentosas, nobres, um relicário arquitetônico das senhoriais vivendas construídas nas primeiras décadas do século XX. As fachadas são bem características da nossa assimilação do estilo art nouveau com as imprescindíveis sacadas de ferro em notáveis trabalhos que são verdadeiras "rendas" e arabescos fundidos. As portas têm rótulas e postigos com vidraças coloridas importadas da França, da Bélgica e da Holanda. As portas de entrada dão acesso aos pequenos vestíbulos ou salas de espera. As artísticas platibandas ostentam balaústres, "pinhas", "abacaxis", jarrões.


      Casa de Thomaz Pompeu vista da Praça.


      Mas existem, também, soberbos bangalôs. São as construções mais recentes, espelhadas nas residências das estrelas de Hollywood. Eram assim as mansões do médico Newton Gonçalves, do milionário Checo Diogo, do interventor Menezes Pimentel. Até uma típica mansão inglesa tem na avenida do Imperador. É a residência da família Thomaz Pompeu, em frente à Praça Capistrano de Abreu (da Lagoinha). 

      É encantadora sua fachada austera, de tijolinhos vermelhos, enegrecida pela pátina do tempo e sua platibanda com tantos detalhes, além da imponente varanda do andar superior.


      A Praça da Lagoinha em 1967, ainda com a fonte das Nereidas. Acervo Leonardo Nóbrega

      Praça da Lagoinha vista da avenida do Imperador

      No seu livro Royal Briar, Marciano detalha para nós, a avenida na década de 40: 
      "E há singelas casas de beira e bica, como a da inglesa miss Sand, uma solteirona altíssima e muito religiosa, que passa, todas as tardes, para rezar no Santuário da Adoração Perpétua. Usa, sempre, vestidos estampados de preto e branco, minúsculos chapéus pretos, enormes sapatos de linha masculina e, no pescoço, rosário de grandes contas negras.


      Casa de Saúde Dr. César Cals

      Na minha nobre avenida, há a asséptica Casa de Saúde Dr. César Cals, dirigida pelas irmãs franciscanas. O prédio é gracioso e alegre,  contornado por bem cuidado jardim, cheiroso a jasmins e espirradeiras. Possui uma limpíssima capela, acolhedora e silenciosa, na parte superior e, embaixo, no centro, onde a escada se bifurca, um oratório de São Francisco onde, dia e noite, há sempre gente pagando promessas, rezando e acendendo velas.


      Fábrica Progresso na Avenida do Imperador. Arquivo Nirez

      A Escola Doméstica São Raphael. Arquivo Nirez

      (Ao lado, a avenida vista da praça em 1939. Acervo Sérgio Roberto).

      Na avenida do Imperador, ficam o Instituto São Luiz, as fábricas Progressoe Santa Elisa, uma loja Maçônica, a Padaria Ideal, a Farmácia São Francisco, a Escola Doméstica São Raphael, a Escola de Enfermagem São Vicente de Paulo, o Patronato Maria Auxiliadora, onde, no período do Natal, tem o bem montado Pastoril, de irmã Breves, há a pequenina e barroca igreja de São Benedito, com o convento dos padres sacramentinos, há a loja O Gambettá, famosa pelas tintas para tingir roupas, a escola de datilografia do professor Antonio Pimentel, que é dirigida pela Marola; a Villa Diogo, a mercearia do Seu Carlos, velhinho de cabelos brancos, que todas as manhãs brinda sua freguesia com retratos feitos a lápis dos políticos em maior evidência, como Getúlio Vargas, Otávio Mangabeira, Nereu Ramos, Zenóbio da Costa, brigadeiro Eduardo Gomes. O velhinho, que tem aparência de um tranquilo vovô, é simpatizante do Partido Comunista e fica frustado porque não pode expor o retrato do seu líder, Luiz Carlos Prestes. Dá cadeia!


      Padaria Ideal - Arquivo Nirez


      Destaque para a avenida do Imperador

      Quando consigo um tostão, vou comprar "peixinhos" no seu Carlos e sempre tenho a curiosidade de ver a constante renovação da"galeria" de retratos do merceeiro-artista. 
      Nossa casa, de duas sacadas de ferro fundido e uma porta, é imponente e elegante, com sua fachada cor de vinho, balaústres, cornijas e frisos bege. As portas têm vidros incolores e vermelhos de bela e forte coloração. Às quatro horas, o sol, através da vidraça, tinge de sangue o velho sofá da sala de visitas.


      (Ao lado, a avenida em 1985. Foto Acervo O Povo).

      Defronte à nossa casa, mora dona Santinha, virtuosa dama, mãe do político Stênio Gomes, de dona Dolores Caracas e de dona Dulce Gondim. Ao lado da casa de dona Santinha, mora dona Eva Cunha, senhora muito bonita e elegantes, mãe do jornalista Ary Cunha e das elegantes moças Evenita, Berenice, Erbene e Suzy, bem como da menina Marlene, linda loirinha, que é amiga de minha irmã Maria do Carmo e de minhas primas IreneAurinha e Lindete.

      Nosso vizinho da direita é o venerado vovô, o velhinho mais simpático do mundo. Ele, que é avô de verdade do Guilherme Neto, é o vovô faz de conta de todas as crianças das redondezas. Mora com sua mulher, dona Virgínia, e suas filhas Laura, Margot e Lúcia. As duas últimas, são professoras de piano e na sala de visitas há dois desses instrumentos. No final da tarde, todos os dias, seu Guilherme, o querido vovô, de terno branco, chapéu do Panamá, gravata-borboleta e bengala, dá o seu passeio que consiste em rodear a quadra. Vai sozinho, caminha devagar e, a cada instante, é assediado pelas crianças, que param suas cantigas de rodas, suas cirandas, para beijar a mão do sempre sorridente velhinho. Retorna, quando o papagaio já põe em polvorosa a casa, indagando:"Margot, o vovô já chegou?""Ei, Margot, o vovô já chegou?" e, como Margot, ocupada em suas aulas de piano, não responde, ele apela para Lúcia: "Lúcia, o vovô já chegou? Lúcia, Lúcia, o vovô já chegou?" sem obter resposta, dirige-se a Laura e fica a repetir a mesma pergunta, até que vovô chega e o papagaio faz aquela algazarra e no dia seguinte tudo será repetido.


      Avenida do Imperador em 1939. Ao fundo o Casarão de Thomaz Pompeu. 
      Acervo Sérgio Roberto

      Nossos vizinhos são muito especiais. Além dos já citados, há o médico José Carlos Ribeiro, os professores Otávio Farias e João Pinto, o poeta Teixeirinha, a viúva do poeta Epifânio Leite, a família Chaves, de moças muito elegantes; seu Cristóvão e dona Iaiá, genitores do Zé Aírton, da Paulinha e da Marilac. Há seu João, da Viva o Brasil, pequena bodega que faz jogo do bicho.

      É também, na avenida do Imperador, que fica a casa cor-de-rosa da milionária e benemérita dona Elisa Diogo. E há as lindíssimas filhas do professor Antonio Pimentel e dona Jatobá, a Yolanda, a Eliane e a Terezinha. Há a imponente casa de Moisés Pimentel, o conhecido Pimentel do Álcool; e a casa de"bonecas" dos manos Maria de Sousa, Vicencinha e Boa Ventura, as pessoas mais prestativas e verdadeiramente cristãs que já conheci.
      É linda a minha avenida, sem favor, a mais aristocrática da cidade. Nobre, tranquila, limpa, habitada por gente fina e altaneira. Faz jus ao seu nome."

      A Avenida Imperador Hoje:









      Crédito: Livro Royal Briar - A Fortaleza dos anos 40 de Marciano Lopes

      O Ceará Durante a Terrível Seca de 1877

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      Milhares de retirantes ocupam a estação de Iguatu em 1877. - OpenBrasil.org

      "... Na história das secas cearenses nunca houve uma migração tão intensa como na seca de 1877, nem tanto sofrimento, três anos de seca, quando centenas de milhares de pessoas foram se refugiar em lugares menos afetados, como Aracati, Baturité, ou Fortaleza. Na capital da província, famílias maltrapilhas e famintas iam de porta em porta pedindo água e comida, roupas, invadiam plantios das casas nos arredores, moças se prostituíam para sobreviver. No interior, unidos em grupos, flagelados saqueavam depósitos de mantimentos do governo. A população da província estava sendo dizimada pela fome e seus correlatos, como as epidemias. Pessoas se tornavam párias, esmoleres, aviltadas por uma miséria absoluta num lugar estranho, perdendo o mínimo de dignidade que antes possuíam em suas casinhas de palha e roçados e cabras e uma ou duas reses."Ana Miranda

      Anos de seca no Aracati - Blog Histórias do Aracati

      “A peste e a fome matam mais de quatrocentos por dia”, escreveu Rodolfo Teófilo, horrorizado com o que assistia; parado numa esquina, em pouco tempo viu passarem vinte cadáveres. “E as crianças que morrem nos abarracamentos, como são conduzidas! Pela manhã os encarregados de sepultá-las vão recolhendo-as em um grande saco: e, ensacados os cadáveres, é atado aquele sudário de grossa estopa a um pau e conduzido para a sepultura”. As notícias incomodavam a Corte, o imperador chegou a dizer: 


      "Vendo a última pedra da coroa, mas não deixarei mais nenhum cearense morrer de fome"- Imperador Dom Pedro II

      O Governo Federal, hoje, tem e faz uso de diversos mecanismos para minorar a problemática da seca no Nordeste: Contratação de carros pipa, distribuição de renda em programas como o bolsa-família e a anistia de dívidas com a abertura de novas linhas de crédito, como as oferecidas pelo BNB - Banco do Nordeste do Brasil com agricultores nordestinos de até 95%, Lei 13340. Essas ações juntas tem matado a sede e a fome de milhões de nordestinos, como evitado o êxodo rural tão comum num passado bem recente. Muito diferente do cenário há 140 anos na terrível Seca de 1877. 
      Em toda a sua história o Ceará sempre teve em Fortaleza e Sobral os dois principais vetores do desenvolvimento político e econômico, fato comprovado na década de 70 dos 1800 quando Sobral tinha 27.500 habitantes e a capital Fortaleza - 21.000. Veio a seca de 1877 que dizimou 57.700 almas, contingente maior que o das duas principais cidades juntas. 

      Retirantes da seca de 1877 na praça da Estação. Livros os descaminhos de ferro do Brasil.

      O Cenário em Fortaleza no Início de 1877:

      "Primeiro trimestre e nenhum prenúncio de inverno,os estoques de alimentos da Província estavam praticamente esgotados e a fome se fez presente, com levas e mais levas de rurícolas esquálidos inchando a capital-Fortaleza". 

      Cenário em Sobral:

      "24 de março, um grupo de desordeiros armados de facas e cacetes (flagelados vindos dos quatro cantos da Zona Norte, à procura apenas de comida e água em Sobral), percorrem as ruas da cidade, pelas 20 horas, ameaçando assaltar a população..." 

      Estação de Sobral

      Construído por ordem do Imperador Pedro II, o Açude do Cedro, à exemplo da Estrada de Ferro Camocim-Sobral, foram iniciativas do monarca brasileiro visando diminuir os flagelos da seca para as populações do Sertão Central e Zona Norte da Província do Ceará. A Estrada de Ferro de Sobralfoi um pedido pessoal da então maior autoridade em linha férrea do país, sobralense que viria ser em 1881 senador - Dr. João Ernesto Viriato de Medeiros e do também sobralense Dr. José Júlio de Albuquerque Barros (Presidente da Província do Ceará à partir de março de 1878); Concessão que caiu no 'colo' do Cel. Ernesto Deocleciano de Albuquerque. Com a Estrada de Ferro de Sobral o Porto de Camocim se tornara um 'porto privado' da elite sobralense, ligando a 'Terra de Dom José' ao Mundo (O Porto do Mucuripe fora inaugurado em 1951, 20 de outubro, quando aportou o Navio cargueiro Mormacred, da Cia. Moore Mac Curmack Line). 




      Leia também:  Seca e Campos de Concentração em Fortaleza


      Bibliografia.JÚNIOR,Santana.José Moreira da Rocha,o Desembargador Moreira.Fortaleza Nobre,2014. AMARAL,Alberto.Para a História de Sobral,Rio de Janeiro 1953. Jornal O Povo, 2013

      A Semana Santa do meu tempo - Especial Fortaleza 291 anos

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      Aos poucos, os atos mais tocantes e piedosos da Semana Santa, vão desaparecendo, consequências dos Concílios EcumênicosVaticanos I e II.  Lembro-me, menino de calças curtas ainda, na católica Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, com elevada devoção, assistia, juntamente com outros moleques do meu tempo, a chamada “Procissão do Encontro”.



      O velho Fabrício, sineiro da diocese, agarrava-se às cordas que pendiam dos gigantescos sinos de bronze, e, em dobrados graves e solenes, promovia a divulgação da saída do préstito do Senhor Bom Jesus dos Passos, que, no dia anterior, havia “fugido” para a Capela da Santa Casa, como que simbolizando a retirada do Cristo, para a sombria solidão do Horto das Oliveiras


      Em igual tempo, da Igreja do Rosário, construída em 1730 pela comunidade negra, partia a imagem de Nossa Senhora das Dores, que minha falecida avó, Martinha Maciel e outras consanguíneas da irmandade, haviam vestido com um manto de cor violácea. Essa estátua chamava-me deveras a atenção, porque tinha o coração trespassado por um alfanje de prata.

      Naquela época, eu não entendia bem, o que aquilo tudo significava, por mais que vovó, com toda a paciência desse mundo, me explicasse dizendo tratar-se de "uma espada de dor".


      Desta forma, ambos os cortejos, oriundos de lugares opostos, com acompanhamentos, a se perderem de vista, convergiam para o Paço Arquiepiscopal, onde as estampas se encontravam, ficando uma em frente da outra: Mãe e Filho.

      O andor do Senhor Bom Jesus dos Passos era enorme e bastante pesado. Vestia uma túnica roxa bordada em ouro, e, na cabeça, prendendo os longos cabelos em cachos, via-se uma coroa cheia de espinhos agudos. A face, exprimindo dores atrozes, estava banhada em sangue.

      Uma enorme cruz negra contrapesava sobre os seus ombros. Nos quatro cantos da padiola de jacarandá, carregada nada mais, nada menos, por oito homens, sobressaiam enormes ramos de alecrins aromáticos. O percurso desta escultura, durante toda a comitiva pomposa, sempre se dava mais longo que o outro, visto que teria de visitar os "Sete Passos". 

       Foto colhida da janela do andar superior do Hotel Bitu, de Bartolomeu de Oliveira. Arquivo Nirez


      Ao lado, belíssimo Cartão Postal da então Praça D. Pedro (Caio Prado). Ao fundo, o famoso Hotel Bitú.
      O Primeiro deles, conhecido como a “Oração no Horto”, por muitos anos aconteceu no "hall" do Hotel Bitú, naPraça Dom Pedro II. Em cada um desses "Passos", o coro do Seminário, constituído por vozes mistas de soprano, contralto, tenor e baixo, detinham-se e entoavam o "Stabat Mater Dolorosa”.

      A pregação, seguida da bênção do Santo Lenho, constituía-se no ponto terminal daquela festividade. E recordo-me que o discurso -, por sinal longo e às vezes enfadonho -, acabava pronunciado por um orador sacro de renome, que geralmente vinha de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Guardo nitidamente na minha memória, o exórdio de um daqueles vaticínios: "O vosomnes qui transitis per viam, atendite et videti si est dolor sicut dolos meus...".

      O cerimonial da Semana Santa iniciava exatamente quarenta dias após a páscoa, às nove horas em ponto, sem nenhum tipo de atraso e, terminava no Domingo de Ramos, quase ao meio dia. Realmente, sete dias inteiros, com um conjunto típico de formalidades bonitas de ser visto, notadamente a chamada Missa Pontifical, celebrada pelo então arcebispo metropolitano, Dom Manoel da Silva Gomes.

      Toda a corporação de sacerdotes, regular e secular, freiras, os irmãos da opa (capas roxas e golas vermelhas, sem mangas, com aberturas por onde se enfiavam os braços) e o povo, em geral, recebiam das mãos daquele Antífice, os ramos bentos ornamentados de flores e papel de seda colorido.

      A seguir, vinha a "Quarta-feira de Trevas". Às dezenove horas, a velha , apinhada de gente, acompanhava o Oficio das Trevas, O conjunto vocal do Seminário da Prainha, dirigido pelo jovem padre Joaquim Horta (Lazarista) trauteava, em "cantochão" essencialmente monódico o “De Lamentatione JeremiaeProphetae”. 

       Seminário da Prainha

      Em paralelo, um irmão da ordem ia apagando, uma a uma, as treze velas que se encontravam acesas num grande castiçal preto, em forma de triângulo. De repente, todas as luzes da Catedral se extinguiam e, a derradeira, simbolizando o Cristo, se via, então, retirada acesa daquele candelabro e conduzida, em meio à escuridão, para detrás do altar.

      Durante o "Pater Noster", rezado pelo Arcebispo e igualmente pelos seminaristas, os fieis, ao som dos tímpanos, provocavam uma série de ruídos ensurdecedores, batendo no soalho, cadeiras e livros evocando os bulícios provocados pela tragédia do Calvário.

      Quinta-feira, a benção dos Santos Óleos. A cura da Sé, Monsenhor Luís Rocha e todos os vigários das mais diversas paróquias de Fortaleza sopravam suavemente sobre os vasos que continham o “óleo” dos catecúmenos, tendo, antes, feito três inclinações respeitosas, pronunciando as seguintes palavras: "Ave Sanctum óleum", aumentando de voz, à medida que iam se aproximando do sólio pontifical.

      Eu achava muita graça dos padres velhinhos, vozes trêmulas e vacilantes, quase não conseguiam inclinar-se para pronunciarem aquelas invocações. À tarde, normalmente a se enchia de gente para a cerimônia do lava pés. Muitos se acotovelavam para ficarem perto dos doze mendigos e observar se o Celebrante beijava, mesmo, os pés dos pedintes e folgazões que representavam os apóstolos.

      Nesse tom de momentos imperdíveis, solenes com a Quinta-feira, eram também a Sexta–feira, com a procissão do Senhor Morto, o sábado da Aleluia, com as descobertas dos Santos e o Domingo da Ressurreição com o Pontifical Soleníssimo e, com a entrada majestosa do Senhor Arcebispo, sob os acordes de "Ecce Sacerdos  Magnus".

      Deixo aqui -, senhoras e senhores, Ad Perpetuam ReiMemoriam -, um pequeno e resumido quadro do muito que acontecia na Semana Santa, das missas realizadas em latim,  das procissões, das quermesses, enfim, dos meus idos de garoto e, evidentemente, da Fortaleza querida (terra de minha falecida avó Martinha Maciel) dos meus eternos sonhos de adolescente."


      Aparecido Raimundo de Souza
      De Vila Velha Espírito Santo ES.

      Historicídio de Fortaleza - Por Adauto Leitão

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      Forte de São Sebastião (Antes de recuperando, ampliando e rebatizado por Martins Soares Moreno, tinha o nome de Fortim de São Tiago) - Gravura do livro do holandês Arnoldus Petrus- ano 1673 

      "A“data oficial do aniversário de Fortaleza”, com supostos “291 anos” é tão risível do ponto de vista da ciência história; o quanto nociva às gerações, na maneira como se trata a memória dos cidadãos e da cidade. Já conceituei que omitir 122 anos de uma construção histórica é um crime de lesa capital, à razão do Marco Zero de Fortaleza com 413 anos. 

       Mapa da costa cearense em 1629

      Fortaleza em 1859, por José dos Reis Carvalho. 

      O que acontece de fato é um Historicidio de Fortaleza não somente patrocinado pela Prefeitura, mas, com certas omissões da Câmara Municipal que, diga-se, tem 316 anos de fundação. Faz uma década que se impõe de todo custo “uma comemoração”, que já saqueou dos cofres públicos municipais 54 milhões de Reais (dados até 2016); numa inversão de prioridades, de tal modo perversa, que muitos destes recursos poderiam ter outro destino, aplanando a desigualdade social. Esta mega festa foi “criada” pela ex-prefeita Luizianne Lins que não escondia “ser data especial o 13 de abril”, levando em consideração a sua autoafirmação de “marxista esotérica”, então, – o que pensar disso… 

      A“festa”, em 2017, tem a “participação” deRaimundo Fagner neste Historicidio de Fortaleza; mas, lembro que: “Bela é uma Cidade Velha”… 

      Fardamento gestão Luizianne Lins

      Historicidio que acontece nas escolas municipais, não apenas como uma atitude de negação curricular da História de Fortaleza, mas como desvalorizando a disciplina fundamental na formação da cidadania e um sentimento de pertença da cidade. No campo da educação outro absurdo, crianças e adolescentes foram obrigados a vestirem uma farda, ao gosto da gestão municipal; por exemplos: no tempo do Juraci Magalhães, o fardamento era tricolor (azul, branco e vermelho) que poderia lembrar alunos chilenos; no período da Luizianne Lins (vermelho predominante) que tinham similitude aos“cubaninhos”. Mas, o prefeito Roberto Cláudio foi muito além, desfigurou a bandeira e o brasão municipal para colocar o seu“padrão de governo” e, tudo isso, com aval da Câmara Municipal de modo que num tipo azul celeste, estudantes propagandeiam “a nova identidade de marca” ao que até parecem“ninhos uruguaios”… 

      Imagem Jornal O Povo 

      A identidade de Fortaleza não acontece hoje pela História dos seus 413 anos, mas pela forma imposta de uma“cidade nova” com seus 291 anos. Última análise, destituída de conteúdo da sua construção histórica, que é intrínseca à memória coletiva. Importante questionar ser um “produto de mercado”, algo vil e torpe, diga-se, até para o conceito de turismo. Pois, Fortaleza perde o status de ser apresentada como uma das primeiras e mais importantes capitais do Brasil com mais de 400 anos. Os símbolos e expressões dessas identidades representam um pré-requisito para a construção de uma sociedade mais consciente, justa e igualitária. Por essa razão, preservar e proteger o passado é essencial para garantir os legados, valores, ideias e narrativas que ajudam há transpor o tempo e espaço… 

      Historicidio de Fortaleza – Não!"

      Adauto Leitão 
      Historiador, Acadêmico-Fundador e Diretor Da Acecult


      Concordo em gênero, número e grau com o Adauto Leitão!

      Então, que fique bem claro! Esse aniversário de Fortaleza, que ocorre hoje (13 de abril), é apenas a comemoração da elevação do pequeno povoado à condição de vila, que ocorreu em 1726 (Há 291 anos). Não se trata, em hipótese nenhuma, do surgimento da cidade!
       
       
      Fonte: Jornal O Estado
       

      O Roqueira - Ceará Moleque

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      Ainda se conserva, entre os antigos de Fortaleza, uma vaga reminiscência da festa do Dia dos Rei, que se efetuava na Igreja do Rosário.
      Festa de pretos, mas levada com grande pompa e luxo, as negras escravas ostentando grossos cordões de ouro, brincos e joias de valia, que suas bondosas senhoras lhes emprestavam para que se apresentassem com o espavento e brilho exigido pela importante cerimônia da missa e coroação dos reis.


      Conserva a tradição a fama destas festas e recorda o poder despótico de que os reis ficavam investidos nesses afastados e famosos dias: podiam dar ordens a quem quer que fosse, prender ou soltar qualquer dos seus súditos; e conta-se de que um deles que, para mostrar para quanto prestava, mandara amarrar em um poste, no pátio de Palácio, um pobre negro com o olho para o sol.


      Imagine-se o que faria esse Pedro Cru africano com os seus senhores se, pelos vaivéns da sorte, viessem, um dia, a ser seus escravos!
      Um negro malcriado e pernóstico viveu aqui, lá pelos anos de 1840; e como gozasse de certa influência entre seus pariceiros foi escolhido rei mais de uma vez.
      Porque tinha o nariz grande e as ventas muito acesas, era conhecido por 'venta de roqueira', ou, simplesmente, Roqueira.

      Segundo os bons exemplos dos homens de então, tinha em casa a sua Marcela, teúda e manteúda. Não temos certeza de que fosse escravo; mas, pelo que vai a seguir, parece-nos que era negro forro.
      Certa vez, tendo sido eleito rei, pediu a Antônio Antunes, poeta malicioso e satírico, que escrevesse um discurso laudatório, para ser lido logo após a missa solene.
      Antunes, que não era gente e concentrava em si espírito do Ceará-moleque, irreverente e acanalhado, compôs uma versalhada exaltando a "Sua Majestade".
      Chegado o momento oportuno, começou a ler os versos, perante a corte e a assistência.

      Roqueira, assentado no trono, de coroa na cabeça, tendo ao lado a sua rainha, impava de satisfação e de orgulho.
      Antunes continuava, muito sério, a desenvolver, em meio à aprovação ingênua dos pretos e fingida dos brancos, a lista de virtudes e qualidades do monarca.
      O penúltimo verso, infelizmente, a tradição não conservou, mas, ainda mais do que os outros, exaltava o rei. O último porém, dizia assim:

      Para mostrar que sou rei,
      Marcela me ponha nu,
      Toque-me fogo no ...;
      Verão que estrondo darei.

      Por pouco a igreja não desabou ao troar da gargalhada que se seguiu. Um escândalo!
      A alusão ao apelido era clara.  Roqueira não perdeu o aprumo; mas todos viram que ficara "reinando" (os nossos antigos empregavam o verbo reinar no sentido, também, de se estar impando de raiva, mas em silêncio).
      Quando a festa terminou, Roqueira agradeceu, com um riso amarelo, os cumprimentos dos que se iam. Passados dias, Antunes levava uma derreadela de pau, que o deixara bem convidado.
      Era a vingança de Roqueira.
      Conta John Lingard, na sua History of England, que certo rei inglês mandara açoitar um poeta que fizera uns versos menos respeitosos e alusivos a Sua Majestade.
      Aplicado o castigo, dissera o soberano aos cortesões: "Vejam com isto, estes poetastros, a sorte que os espera se ousarem menoscabar o rei  de Inglaterra".

      Roqueira não sabia disto, porque, se soubesse, teria carregado a mão ainda mais; e se Antunes conhecesse o fato, teria tido mais cuidado com a língua porque, ainda naqueles tempos, era perigoso debicar um poderoso, embora fosse ele rei de um só dia.

      05 de janeiro de 1938


      Fonte: Livro Fortaleza Velha de João Nogueira - 2ª Edição - 1981


      Fortaleza antiga - Rivalidade no transporte coletivo na década de 20

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      1º Round

      Nesta cidade, mais especificamente no final da década de 1920, os ingleses da Lightduelaram contra o advento dos proprietários de bondes na capital. Todavia esse duelo não se limitou a um desentendimento de empresários que investem no setor de transporte, mas tal conflito concentrou a atenção de diversos atores como políticos, juízes, operários tanto do setor de bonde quanto do setor de ônibus, e população usuária do sistema, o que foi um prato recheado de matérias para a imprensa local.

      Na capital cearense, trabalhar no setor de transporte foi meta pretendida por alguns empresários que, no decorrer do desenvolvimento desse setor, travaram entre si disputas judiciais e políticas, com forte apelo popular, pelo direito de exercerem o trabalho na capital. 
      Tais acontecimentos começaram a ganhar proporção com o surgimento das primeiras empresas de ônibus, em fins da década de 1920, que rivalizaram com a empresa inglesa de bonde elétrico The Ceará Tramway and Light Power o direito das concessões das linhas urbanas. 

      Viagem experimental do primeiro bonde elétrico de Fortaleza em 1913. Acervo Nilson Cruz

      Em Fortaleza, quem obteve o privilégio de trabalhar inicialmente prestando um serviço regular de transporte coletivo foi a empresa de bondes denominada Companhia Ferro Carril do Ceará. Nesse sentido, a implantação de uma companhia que aplicasse um serviço regular de transporte coletivo vinha ao encontro das transformações que estavam se solidificando nos âmbitos sociais, econômicos e urbanísticos na segunda metade do século XIX. Esta empresa chegou à capital cearense desfrutando de privilégios, concessões e monopólio, fatos que seriam uma tônica na história do transporte coletivo da capital e que iriam desencadear movimentos contra tais regalias por parte de alguns empreendedores que se interessaram por esse serviço. 

      Antigo bonde de tração animal.

      Com o desenvolvimento da cidade, no começo do século XX, as autoridades e a própria população começaram a reivindicar melhorias urbanas. Os bondes de tração animal já não davam mais conta das necessidades da capital cearense. O governo municipal tomou algumas iniciativas, determinando a renovação do contrato da Companhia Ferro Carril, desde que esta substituísse a sua tração animal por uma tração elétrica. Em 1910, a Câmara Municipal ratificou a continuação do contrato privilegiado da empresa de bonde. Para efetivar esse caro serviço de instalação de eletricidade, o dono da empresa Ferro Carril, Senhor Tomé da Mota, angariou parceria com grupos ingleses. Dessas relações, o resultado seria a compra dos aditivos e dos direitos da Companhia Ferro Carril pela empresa inglesa The Ceará Tranway and Light Power. A companhia inglesa adquiriu a Companhia Ferro Carril no ano de 1912 e demais companhias de bondes de pequena expressão como a Companhia Ferro Carril do Outeiro. A compra da empresa Ferro Carril do Ceará e demais empresas pela concessionária inglesa não mudou seus estatutos. Ou seja, os privilégios e monopólio foram transferidos a outra empresa, neste momento pertencente a um grupo estrangeiro inglês. A referida empresa chegou a Fortaleza com um aparato governamental e judicial que a possibilitou desfrutar de vários privilégios para exercer seu trabalho na capital. Dentre o monopólio, destaca-se também o total de tempo que uma companhia de bonde teve de concessões para trabalhar em Fortaleza, já que a Light incorporava o tempo concedido à companhia Ferro Carril do Ceará, que chegava a cifra de quase 75 anos de concessões. 


      Os privilégios existentes para a Light, as facilidades que esta teve, o retorno financeiro que a empresa desfrutou não se reverteram em um serviço urbano de boa qualidade para os usuários. 

      Ao lado, vemos um ônibus na rua Major Facundo dobrando a Guilherme Rocha. Acervo Ivan Gondim

      A companhia britânica não se aproveitou do leque de oportunidades para convertê-los em um serviço eficiente. Desde seu começo, a atividade oferecida pela empresa britânica apresentou-se ineficiente e desrespeitosa para a população, que estava “obrigada” a usar os bondes da empresa inglesa, já que, no serviço de transporte urbano, quem detinha o monopólio de trabalhar nessa atividade, juridicamente, era a Light.
      As reclamações em torno da empresa foram evidentes desde o começo do seu trabalho. A empresa de transporte urbano que se estabeleceu em Fortaleza com isenções, concessões, monopólio, clientela garantida não conseguiu exercer um serviço eficiente que satisfizesse os usuários de bondes, que clamavam por um serviço mais completo, organizado. No decorrer dos anos de atuação da companhia londrina, o número de reclamações tanto de usuários quanto de funcionários da própria empresa só teve a aumentar. Para os funcionários, tais reivindicações eram pautadas em questões de aumentos salariais e diminuição da carga horária de trabalho. Aos usuários do transporte coletivo, seus apelos circunscreviam em torno de um melhor serviço, no respeito com o cumprimento dos horários, na diminuição das tarifas e em investimentos para melhorar a estrutura física dos bondes. No meio dessas reclamações, devido ao serviço ineficiente para a cidade, no final da década de 1920, surgiram a empresa Matadouro Modelo e empresa Ribeiro & Pedreiraque pretenderam apresentar um modelo alternativo de transporte baseado no auto-ônibus para servir à população, preenchendo os espaços que a poderosa empresa inglesa não podia ou tinha interesse em efetuar e, principalmente, oferecer um serviço mais dinâmico e modernizado. 

      Um ônibus da empresa Pedreira. Acervo Assis Lima

      A primeira empresa a se destacar foi o grupo responsável pelo Matadouro Público da cidade, a empresa Matadouro Modelo. Ciente da insuficiência do número de bondes para o local, a empresa conseguiu autorização para exercer um serviço de auto-ônibus, em 1926, para transportar seus funcionários e demais pessoas que tinham interesse em se deslocar para aquele espaço. O surgimento da empresa foi importante para apresentar a necessidade da implantação de outros grupos trabalhando no setor de transporte coletivo. 

      Ainda na década de 1920, surgiu a Empresa Ribeiro & Pedreira, que foi a maior concorrente da Light nesse período e que foi a principal protagonista do conflito contra a empresa britânica. Essa empresa de ônibus teve suas atividades muito bem vistas por parte da população, que clamava pelo surgimento de mais opções nesse setor para viabilizar um serviço mais eficiente e barato. O surgimento da Ribeiro & Pedreira apresentava-se como uma possível solução ao precário sistema de transporte que havia em Fortaleza, devido aos abusos e à ineficiência da companhia inglesa. Ela representava uma modernidade, um progresso que o desenvolvimento da cidade necessitava.

      A empresa Ribeiro & Pedreira teve que enfrentar uma concorrente poderosa e não estava disposta a aceitar perder suas regalias. Durante a década, acompanharemos uma verdadeira guerra política de opinião e judicial entre esse grupo e a Light, pelo direito de se apropriarem de determinadas áreas da cidade para exercerem o seu trabalho. Nossa proposta se pautou justamente em analisar as disputas que ocorreram entre as empresas pelo controle das linhas de trânsito no espaço urbano de Fortaleza e as decorrências dessa disputa para a população. Por isso nosso recorte temporal começa em 1926, ano que demarca o surgimento da primeira empresa de ônibus e que abriu possibilidades para a implantação de demais empresas, e finalizamos nossa análise no ano de 1929, data considerada por acontecimentos marcantes como a grande greve que paralisou os bondes da Light, apresentando a necessidade da capital ser “socorrida” pelos ônibus, como também ano importante para essa querela na medida em que os motoristas das empresas de ônibus conseguiram continuar circulando pelas vias da cidade, rompendo, na prática, com as proibições de circulação. A análise da segunda metade da década de 20 (1926-1929) é bastante pertinente para compreendermos como se deu a disputa primária pelo processo de apropriação das linhas urbanas na capital cearense com a chegada dos primeiros ônibus. Para efetivar um serviço de transporte coletivo, uma pequena empresa de auto-ônibus que estava surgindo deparava-se com óbices inelutáveis: os privilégios cedidos à Light e o monopólio adquirido por esta. A história da companhia inglesa foi marcada por uma proteção do governo municipal, que ampliava as possibilidades de lucro da empresa através de privilégios, como exemplo a questão das tarifas. Sem concorrência e com apoio da Câmara Municipal, a proteção que a Light teve em relação à imposição de tarifas sempre foi um fator de revolta da população, que gradativamente pagava por um serviço caro e de pior qualidade. Diante de tais privilégios e do monopólio das linhas pertencentes à Light, como poderia uma pequena empresa de ônibus como a Ribeiro & Pedreira, que estava se formando, exercer seu direito de trabalhar? Como praticar uma atividade, se esta era atividade exclusiva da companhia londrina? Não se podia dizer que a prática da empresa de bonde era ilegal, já que seu exercício era juridicamente legal, pautado em leis. Abrir exceções para demais empresas seria algo que iria de encontro ao conjunto jurídico que defendia as concessões para a Light.

      Acervo Assis Lima

      Como a cidade de Fortaleza foi transformada com a inclusão de novos incrementos urbanos no final da década de 20? As intervenções políticas e judiciais por ambos os interessados em trabalhar no transporte coletivo foram cenas que tiveram grande repercussão e diferentes pontos de vista, tanto por parte de autoridades, quanto por setores do judiciário. A Light, desde sua formação, nunca exerceu um serviço satisfatório para a capital. Esta empresa, no final da década de 1920, começou a ser vista como uma estrutura retrógrada para o desenvolvimento e crescimento da cidade, especialmente a questão do seu monopólio em linhas. O serviço era ineficiente, perigoso e acarretava reclamações por parte da maioria dos seus usuários. Diante do quadro estruturado de reivindicações por parte dos usuários e da incapacidade que a empresa de bondes apresentou para efetivar o serviço de transporte, as autoridades passaram a rever os privilégios delimitados à Light e abriram a possibilidade da inclusão de empresas de ônibus exercerem o serviço de transporte regular na capital cearense. A grande questão era encontrar uma solução para regularizar o serviço das pequenas empresas, já que perante algumas leis a Light tinha os privilégios e concessões para trabalhar exclusivamente em suas linhas. 

      A Assembleia Legislativa do Ceará procurou dentro do corpo jurídico e de jurisprudências artifícios para limitar esse poder de barganha. A estratégia da Assembleia foi fazer uma reinterpretação das leis e concessões da Light. Para afirmarem sua posição, as autoridades foram buscar na Carta Magna Constitucional da República a afirmativa de que a liberdade de comércio e indústria era assegurada pelos princípios da Constituição. Perante esse argumento, a Assembleia não considerava que a questão de concessão incorporasse o epíteto de monopólio, mas somente de um privilégio. É importante salientar que, dentro da Constituição Brasileira da época, a concessão de monopólios para determinados serviços não era visto como algo ilegal, pois entendia-se que determinados serviços de custo elevado de capital necessitavam que somente um indivíduo ou empresa realizasse tal tarefa para potencializar serviços como abastecimento de água, tração e iluminação elétrica, esgotos etc. Entretanto, quando um trabalho monopolizado não conseguia mais atender às demandas da população e contribuir para o desenvolvimento da cidade, esta concessão deveria ser interrompida na medida em que a exclusividade de um serviço é sustentada quando esta tem a capacidade de proporcionar um trabalho eficiente para a comunidade. Nesse sentido, a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará pautava argumentos e determinava que o processo de monopólio do transporte coletivo em Fortaleza fosse extinto. A Câmara Municipal de Fortaleza, que era subordinada aos poderes do Legislativo Estadual no assunto relacionado ao transporte, ficava encarregada de exercer o trabalho de abertura de concorrência pública para demais empresas que tivessem interesse em trabalhar no setor de transporte, com privilégios na concessão, mas sem a temática do monopólio. Com a abertura do processo de participação de demais empresas para o trabalho de serviço, a que se destacou nos anos iniciais foi a empresa de transporte urbano denominada empresa Ribeiro & Pedreira. Tanto esta, quanto a empresa Matadouro Modelo, vinham preencher os anseios populares de uma cidade que se encontrava em crescimento. Os usuários viam essas prestadoras de serviços alternativas mais propícias ao desenvolvimento da cidade e um atendimento com mais eficiência. Todavia, a situação estava longe de ser resolvida. A empresa Light ainda dispunha de forte prestígio tanto político, quanto econômico. A companhia lutou para não perder seus privilégios e no meio de tantas tentativas conseguiu reter o monopólio de suas linhas, não permitindo que os ônibus da Ribeiro & Pedreira trafegassem por cima de seus trilhos. 

      Da mesma forma que leis quebraram seus privilégios, a Light soube usar o aparato jurídico para readquirir seu monopólio: Dessa maneira, a empresa da Inglaterra, ao exigir que os ônibus da Ribeiro & Pedreira ficassem proibidos de transitar pelos seus trilhos, conseguia manter seu privilégio e, ao mesmo tempo, tentava estagnar o serviço da empresa de ônibus, na medida em que as ruas de Fortaleza não tinham um calçamento favorável e dificultavam o trânsito dos ônibus e também destruía a estrutura física destes. A grande dificuldade dessa empresa de ônibus era colocar seus carros em logradouros que não dispunham de nenhuma estrutura para transição de veículos. Diante disso, a alternativa encontrada pela Ribeiro & Pedreira foi transitar em algumas ruas sobre os trilhos da companhia britânica, já que este seria o único local da rua favorável à circulação de seus veículos. Todavia, a Light não concordou com essa atitude e reagiu para que seu material não fosse utilizado pela empresa de ônibus, conseguindo, assim, através da justiça e da força policial, impedir a circulação de ônibus e tentar eliminar uma possível concorrência. Todas essas disputas criaram em Fortaleza um ambiente efervescente que teve participação de vários sujeitos sociais, desde políticos, juristas, empresários e a própria população. Quando falamos em população nos referirmos aos usuários. Tanto setores de classe baixa quanto de uma classe mais economicamente favorecida, utilizavam o serviço de transporte coletivo. A participação popular, principalmente em suas reclamações divulgadas nos jornais, se constituía em criticar e reivindicar por um melhor atendimento. Por isso clamava pela implantação do serviço de ônibus como forma de ampliar e diversificar o setor, deixando-o mais moderno. Todavia, quando o próprio serviço de ônibus começou a causar problemas, as queixas também apareceram nos periódicos.

      Rua Guilherme Rocha em 1920 com os trilhos do bonde.

      Além da formação desse monopólio pela empresa britânica, vamos entender por que a Light não conseguia passar um serviço satisfatório e eficiente, que teve como resultado a necessidade de quebrar seu monopólio, para o surgimento de outros meios de locomoção. Portanto, o foco será a análise do advento dos ônibus, em 1926, que foi pautado na “concorrência livre”, mas em clima não amistoso, na medida em que cada lado tentou angariar os passageiros, desenvolvendo diversos argumentos como velocidade, preço, comodidade, propagandas etc. Visto isso, o surgimento de concorrentes nesse período dinamizou a estrutura do transporte coletivo, bem como paradoxalmente criou novos problemas para a população de Fortaleza.


      Continua...



      Crédito: MANOEL PAULINO SECUNDINO NETO (“Light 'versus' Ribeiro & Pedreira”)

      Fontes: SAMPAIO, Jorge Henrique Maia. Para não perder o bonde: Fortaleza e o transporte da Light nos anos 1913 – 1947. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Departamento de História, Programa de Pós- Graduação em História Social, 2010. / JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e Reverso do Perfil Urbano de Fortaleza (1945 – 1960). São Paulo: Annablume, 2000 / MENEZES, Patrícia. Fortaleza de ônibus: quebra-quebra, lock out e liberação na construção do serviço de transporte coletivo de passageiros entre 1945 e 1960. Dissertação (mestrado) *Universidade Federal do Ceará, Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História Social, 2009. / PONTE, Sebastião Rogério. A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle. In: SOUZA, Simone de.(Org.) Uma nova história do Ceará Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. p.185. /
      KOSTER, Henry; CASCUDO, Luis da Câmara. Viagens ao nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim
      Nabuco/ Massangana, 2002. / Fortaleza Prefeitura Municipal de; CASTRO, Jose Liberal de. Fortaleza: a administração Lúcio Alcântara (marco 1979/maio 1982) . Fortaleza: Prefeitura Municipal de Fortaleza, 1982. P.69 / PONTE, Sebastião Rogério. A Cidade Remodelada. In: SOUZA, Simone de. et.all. Fortaleza a gestão da
      Cidade: uma história política e administrativa. Fortaleza: Fundação Cultural de Fortaleza, 1995, p.44 e 45.

      Fortaleza antiga - Rivalidade no transporte coletivo na década de 20 (Parte II)

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      2º Round

      Postal colorizado dos anos 20. Praça do Ferreira sentido Praça José de Alencar pela rua Guilherme Rocha.

      Fortaleza e o contexto capitalista 

      Quando se fala em serviço para a coletividade, a cidade de Fortaleza teve como característica dotar sua população com serviços urbanos, que geralmente ficavam na mão da iniciativa privada, exercendo esses serviços mediante o aporte de concessões privilegiadas. Essa característica chama a atenção para refletirmos por que motivo quem assumiu determinados atributos urbanos, como distribuição de água, energia, transporte, foram empresas privadas e, principalmente, por que a necessidade dessas concessões. O tema do monopólio foi debatido na Assembleia Estadual e nessas discussões encontramos possíveis respostas para a implantação da forma de distribuição de um serviço público mediante interesses particulares. Em um debate sobre a diversificação do serviço de transporte, nos annaes(sic) da Assembleia Legislativa de 1926, podemos verificar uma grande defesa desse tipo de serviço: 

      Considerando que, em taes casos, são admittidas as concessões de monopólios, em proveito da communhão, porque como ensina Araujo Castro, “serviços ha que, dependendo de avultado capital difficilmente seriam realizados sem a concessão de monopólio durante certo tempo. Além disso, acontece que, ás vezes, os interesses do publico são melhor attendidos colocando-se a cargo de um só indivíduo ou empreza a realização de serviços, taes como os de abastecimento de águas, tracção e illuminação electrica, esgostos, etc. Sobre esses monopólios não incide a proibição constitucional – Manual da Constituição Brasileira, pg.251” 


      (Citações de acordo com a ortografia da época./Annaes da 

      Assembleia Legislativa do Ceará. 75 ª Sessão em 01 de outubro de 1926. p.309.)


      A Fortaleza dos anos 20 num postal restaurado/digitalizado da rua Floriano Peixoto, com o antigo Mercado de Ferro. Trabalho de Arriaga Matinez Juan

      Nesse sentido, o que os deputados estaduais acreditavam, e a própria Constituição da época ratificava, era que determinados serviços demandavam grandes somas de recursos, especialmente para sua instalação, e só seria relevante para o capitalista investir se ele tivesse total controle desse serviço para restituir o investimento aplicado. Perante esse binômio estabelecido entre investimento privado e monopólio, quem soube explorar esse sistema foram empresários ingleses que desenvolveram, em Fortaleza, importantes atividades como o abastecimento de água com a Ceará Water Work Co. Ltd, iluminação pública e particular com a Ceará Gás Co. Ltd e o serviço de fornecimento de transporte coletivo com a empresa inglesa The Ceará Tramway and Light Power.

      Por volta dos anos de 1920, mesmo que de maneira ainda discreta, a cidade de Fortaleza vai passando por algumas modificações: 

      O cotidiano da capital tornou-se atribulado por conta também da intensificação dos fluxos urbanos desencadeada pelo adensamento populacional (nos anos 20 o número de habitantes atinge a casa dos 100 mil), e pela proliferação de automóveis, bondes, caminhões e estabelecimentos comerciais no perímetro urbano. 

      É nesse sentido que Eduardo Campos nos apresenta o Ceará dos anos vinte, parafraseando Raimundo Girão como um momento de significância abrangente para o desenvolvimento econômico, social e político do Ceará. De fato, algumas mudanças ocorreram na década de 1920, mas no geral, especialmente no formato urbano, as mudanças não foram expressivas. Se formos observar o desenvolvimento urbano da capital desde o século XIX até o século XX, percebemos algumas abrangências na questão urbana, todavia a cidade ainda apresentava sérios problemas de infraestrutura. Nas palavras do viajante britânico Herry Kosterm em 1810, Fortaleza foi edificada por um terreno arenoso, havendo quatro ruas que partiam da praça. Tinha como pontos negativos seu comércio e as ruas sem calçamento. 


      Este último problema parece ser uma constante na capital do Ceará que na chegada da década de 1920 ainda sofria com as ruas sem calçamento em pontos importantes para a circulação das pessoas. Podemos perceber um gradual crescimento da cidade perante as construções de obras que estavam sendo arquitetadas mediante as necessidades da capital. Essas mudanças começam a aparecer quando pesquisamos na planta da cidade de Fortaleza do ano de 1875, de Adolfo Herbster. Na planta é possível perceber novas obras como o “Cemitério Novo” de SãoJoão Batista, A “Estação Ferroviária”, o gasômetro, a designação do Passeio Público e o reajuste da malha urbana.
      Liberal de Castro também nos dá uma visão de algumas mudanças urbanísticas encontradas em Fortaleza mediante as construções que estavam ocorrendo na cidade nas décadas de 1900-1910. Em 1905, de acordo com os padrões franceses de um ecletismo arquitetônico foi construído o prédio da Fênix Caixeral. Já em 1908, a Associação Comercial, na rua Formosa – Barão do Rio Branco – inaugurava sua sede no estilo Greco-romano. Nesse mesmo ano, daria início a mais bela construção da arquitetura cearense: o Teatro José de Alencar, cuja inauguração ocorreu em 1910. A primazia de pontes de concreto em Fortaleza se deu em 1918, no governo de João Tomé.

      Na década de 20, os poderes públicos tiveram uma atuação urbanística no sentido de ampliar e reformar as ruas e avenidas, criando pavimentações, que visavam qualificar o serviço de trânsito e dinamizá-lo, devido, principalmente, a uma maior circulação de mercadorias e de pessoas. Nesse período, os legisladores começaram a pensar os locais de movimentação de uma maneira mais dinâmica, racionalizada, que se adaptasse às necessidades locais advindas de uma maior dinâmica no deslocamento. Exemplo disso foi a reforma da Praça do Ferreira, cuja primeira obra pautou-se no aformoseamento, mas em 1925 suas diretrizes se reverberaram em conceitos racionalizadores para facilitar a circulação de pedestres. 

      A Praça do Ferreira nos anos 20. Arquivo Nirez

      Essa racionalização do espaço urbano, especialmente na parte central da cidade, e a atuação da administração municipal em criar melhorias para o fluxo de veículos foram acontecimentos marcantes desse período, já que a cidade passava a conviver com uma grande circulação de bondes, caminhões, carros e passava a acolher a chegada dos primeiros ônibus: 

      Na década de 20, embora a preocupação com o embelezamento urbano continuasse marcante, a administração municipal teve que lidar com novos problemas demandados pelo crescimento populacional e pela multiplicação dos meios de transporte que se verificaram no período. Tais questões requereram estudos e medidas que levassem em conta, além do fator estético, uma maior concentração espacial, o que compreendia recorrentes intervenções no sistema viário da cidade, objetivando torná-lo mais funcional.

      Continua...


      Crédito: MANOEL PAULINO SECUNDINO NETO ( “Light 'versus' Ribeiro & Pedreira”)

      Fontes: SAMPAIO, Jorge Henrique Maia. Para não perder o bonde: Fortaleza e o transporte da Light nos anos 1913 – 1947. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Departamento de História, Programa de Pós- Graduação em História Social, 2010. / JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e Reverso do Perfil Urbano de Fortaleza (1945 – 1960). São Paulo: Annablume, 2000 / MENEZES, Patrícia. Fortaleza de ônibus: quebra-quebra, lock out e liberação na construção do serviço de transporte coletivo de passageiros entre 1945 e 1960. Dissertação (mestrado) *Universidade Federal do Ceará, Departamento de História, Programa de Pós-Graduação em História Social, 2009. / PONTE, Sebastião Rogério. A Belle Époque em Fortaleza: remodelação e controle. In: SOUZA, Simone de.(Org.) Uma nova história do Ceará Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. p.185.
      *KOSTER, Henry; CASCUDO, Luis da Câmara. Viagens ao nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim
      Nabuco/ Massangana, 2002. / Fortaleza Prefeitura Municipal de; CASTRO, Jose Liberal de. Fortaleza: a administração Lúcio Alcântara (marco 1979/maio 1982) . Fortaleza: Prefeitura Municipal de Fortaleza, 1982. P.69 / PONTE, Sebastião Rogério. A Cidade Remodelada. In: SOUZA, Simone de. et.all. Fortaleza a gestão da

      Cidade: uma história política e administrativa. Fortaleza: Fundação Cultural de Fortaleza, 1995, p.44 e 45.


      Cidade da Criança - A Praça Que Veio do Sertão

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      Uma Fortaleza menina...


      "Uma pequena cidade de 35 mil habitantes, lá nos tempos distantes da metade do século XIX, que crescia às margens de um riacho. Sem infraestrutura, com um comércio em torno de uma praça de areia e de duas igrejas. Assim era Fortaleza por volta de 1850, com o córrego do Pajeú descendo do “Oiteiro” (Outeiro-Aldeota) com suas curvas, a Praça Municipal(do Ferreira) e as Igrejas do Rosário e de São José (). Muita criação animal para alimentar o povo, praticamente sem fiscalização, mas para tal precisava de água doce, que não fosse do corrente que passava límpido nos quintais das casinhas, por isso a necessidade de uma lagoa “mais distante”. No final da Rua do Cajueiro, atual General Bizerril, pelo lado sul da cidade de então, havia currais e chiqueiros onde os animais se alojavam, debaixo de cajueiros, antes do abatimento, e ali mesmo o seu comércio, em meio ao matagal. Certa vez, ocorreu que, como animal tem sentimento, um garrote tratou de fugir na noite que antecedia à sua morte, embrenhando-se na mata. Somente muitas horas depois foi recapturado, o que lhe valeu, pelo menos, o nome do logradouro: Lagoa do Garrote. Nascia o "bairro"Alagoa do Garrote



      Lagoa do Garrote-A Rainha do Nosso Parque 

      O crescimento populacional de Fortaleza associava-se mais às secas, que levavam para a sua periferia os flagelados, povo sem instrução, letras e noção de destino, mas disposto a trabalhar para garantir um pouco de sustento. Todos careciam do líquido precioso, ainda que sem tratamento específico, daí a necessidade de criação de poços para o consumo, como chafarizes, servindo como alternativa às ausências e competitividade frente à excelência da Cacimba do Povo, de Jacarecanga, a do Beco do Cacimbão (que ainda se encontra na Praça do Ferreira) e o da bica, ambos no lado velho da cidade, prestativos para todas as necessidades. Foi quando, em 1848, providenciaram um cacimbão no Largo do Palácio (da Luz), isso bem depois do Açude do Garrote, construído por José Martiniano de Alencar quando presidente da província (1834 - 1837). Porém, já naquele ano a nossa lagoa, usada também para banhos do povo, muitas vezes sem roupas, já não era tão acolhida, estando suja e imprópria ao consumo humano. O presidente Fausto Augusto de Aguiar fez a solicitação de construção de um cacimbão no Garrote, então “de água pantanosa”, a qual abastecia a cidade, e outro no Campo da Pólvora (Praça dos Mártires) por 88$280 réis. Os jornais liberais, de oposição, não perdoavam, fazendo cobranças, como lemos em O Cearense de 20 abril 1848: 
      “Lamentamos que continue a população desta cidade a servir-se da lagoa pantanosa do Garrote, e se não tenham podido ainda realizar as ordens do presidente sobre o melhoramento das cacimbas. A lagoa que bebe o povo não é objeto de pouca monta, como alguém pensa, as febres gástricas estão continuando, e podem ser atribuídas à má qualidade da água. Portanto, é mister cuidar seriamente disso”. 
      Providenciou-se 60$000 réis a Luiz de França Tavares para os cinco serventes que construíram as duas cacimbas no Garrote.


      Foto do Jornal O Estado - Acervo Lucas 

      Mesmo diante dos perigos de contaminação, por décadas as feiras de porco, carneiro, peru e hortaliças se estabeleceram no local. Mas diante das denúncias de infestação de doenças causadas pela poluição da lagoa, no início de 1861 o Dr. Joaquim Antônio Alves Ribeiro foi contratado pela província, constatando que nas águas verdes claras e fedorentas existiam matérias estranhas “levadas pelos ventos”, e pelo microscópio verificou-se quantidade enorme de corpúsculos vivos e mortos que povoavam aquele ambiente. Temperatura elevada de 25°C. O jornal O Cearense recomendou à municipalidade “a remoção de mananciais, rasgando o sangradouro até o nível fundo, jogando cal vivo e enxugando para matar as espécies de animais microscópicos que ali se desenvolveram”. Em maio de 1861, parecer do Dr. Ribeiro assim respondeu à pergunta do presidente da província, Manuel Antônio Pinto Duarte de Azevedo: “As águas estagnadas do açude do “Pageú” podem prejudicar o estado sanitário da capital incontestavelmente. O estado atualmente arruinado das suas águas é prejudicial à salubridade pública. Os exames cuidadosamente feitos indicam que convém fazer nesta conjuntura para não privar o publico da utilidade que o açude presta, e torná-lo de maneira que suas águas estagnadas não sejam prejudicadas por meio de suas emanações à salubridade pública. Aproveito a oportunidade para também dizer o meu pensamento relativamente à existência da Lagoa do Garrote porque as suas águas se acham ainda e piores condições do que as do açude, e como tenho estudado ambas localidades, julgo mui conveniente unir a este parecer as minhas ideias relativas ao estado atual, visto que as águas estagnadas da dita lagoa também influem sobre a salubridade pública, e por isto também precisam de remédio”. 


      Cidade da Criança em 1935 (Foto M. Guilherme). Acervo Lucas

      8 de julho de 1862. Ofício da Câmara ao Exmo Presidente: “A Lagoa do Garrote está sendo hoje lugar de despejo de imundícies, de sorte que a água exala um fétido extraordinário, que não pode deixar de resultar em grande mal para esta cidade na quadra presente. Portanto, pede esta câmara a V. Exc. para que tomando este negócio em consideração, dê suas providências para que seja desinfetado aquele lugar, aterrando-se ou esgotando-se a dita lagoa”. Conclui-se que tanto o Pajeú como a Lagoa do Garrote estavam contaminadas, estando as suas águas não recomendadas para o consumo. Porém, nada de respostas das autoridades. Em 1 de agosto de 1865 foi regulamentado o serviço de limpeza do centro histórico, aos cuidados do fiscal Joaquim de Macedo Maciel, estando aquele logradouro agendado para as sextas feiras. Naquela época, do seu lado sul, existia um terreno mais valorizado que o da lagoa, onde se erguia a Capela de Nossa Senhora das Dores, para a qual a Assembleia Provincial aprovou a doação de 1:000$000 (um conto de réis), inaugurada dois anos após. Na Praça da Liberdade, exatamente no mesmo local em que surgiu, em 25 de março de 1886, a Igreja do Coração de Jesus


      Foto ao lado: Gov. Liberato Barroso, pref Cassimiro Montenegro e Dr. Barão de Studart, entre outros. (O Malho, 1915) - Acervo Lucas 

      José Júlio de Albuquerque Barros, presidente da província, mandou arborizar a praça, assim como a Figueira de Melo, a Boulevard Duque de Caxias e a Conde D’Eu em 1880, ano em que , naquele largo, construiu-se um prédio para guardar equipamentos militares aos cuidados do alferes Berlamino Accioly de Vasconcelos.

      Parque da Liberdade pelas Mãos de Trabalhadores Famintos 


      O paulista Caio Prado assumiu o governo cearense (1888 - 1889) decidido a valorizar a Lagoa do Garrote, tornando-a um centro de lazer para os fortalezenses. 

      Foto ao lado - Imagem aérea de 1938 de J. A. Vieira. Acervo Lucas 

      Em termos financeiros deveria se preocupar com os fornecedores e com algumas desapropriações, afinal mão de obra barata não faltava. Tratava-se de mais uma época de seca, a nona apenas naquele século de um total de onze. Não foi tão cruel quanto a de 1877 - 1881, o que não impediu uma nova “invasão” da capital por retirantes, seja a pé, seja sobre animais ou nos vagões da Estrada de Ferro Baturité (EFB). Muitos, infelizmente, não chegaram ao destino. Numa atitude mais política que humana, os políticos governistas indicaram cem desses flagelados para dar início aos serviços. O crítico O Cearense protestou, pedindo mais trabalhadores em obras públicas tendo em vista a gravidade social, com pessoas morrendo de fome, em detrimento dos enormes gastos. Caio Prado duplicou esse número, porém, em julho de 1889, atrasou os pagamentos de modo que em agosto um operário morreu por falta de alimentação. Os liberais encamparam, então, uma série de denúncias contra o presidente. Passaram a chamar a obra de Largo dos Escândalos


      Veio o período republicano e tomou posse o primeiro governante da era, o tenente-coronel Luís Antônio Ferraz, ao qual os liberais esperavam em vão se aliar. 

      Foto ao lado - Cartão Aba Film (1937). Acervo Lucas

      Coronel Ferraz acabou inaugurando o Parque da Liberdade, outrora Lagoa do Garrote, que a partir de 16 de abril projetou-se como Largo da Liberdade, no dia 13 de maio de 1890. Homenageava a data de libertação dos escravos no Brasil (1888). O responsável pelas obras foi o engenheiro militar Dr. Romualdo de Barros, diretor de Obras de Socorro de Fortaleza. Às 9 horas, ao som da banda do Corpo de Segurança Pública, o inédito parque, um magnífico lugar voltado para diversões decorado com bandeiras, com balanços e trapézios, foi entregue diante de uma multidão. À tardinha, das 17 horas às 19 horas, novamente a banda de música, agora para dançantes. Na ocasião, o industrial José Borges Gurjão presenteou o complexo com um canindé e uma arara para a coleção de aves ali existentes, como um pavão de bela linhagem, dando origem ao único zoológico da cidade. Já o Comendador Francisco Coelho foi um dos indenizados por ceder terreno para a extensão do parque, que só seria concluído em 1902, com a construção do muro. Iniciava-se uma reurbanização do Centro, ao mesmo tempo em que em julho era inaugurado ao lado da lagoa o Café Cascata
      Obras de ajustes continuaram, como retiradas de casebres, e mais uma vez trabalhadores sofrendo com atrasos salariais.


      1890: o primeiro café. Acervo Lucas 

      As Bandas nas Praças 

      Fortaleza contava com dois belos espaços para entretenimentos: a Praça dos Mártires e a Praça da Liberdade. Em 31 ago 1890, no Largo da Liberdade, a banda de música do Corpo de Segurança Pública tocou as seguintes peças: 

      I - Marcha: Progresso da República. 
      II - Dobrados. 
      III - Fantasia da Ópera Trovador. 
      IV - Sinfonia da Ópera O Guarani. 
      V - Aliser, a Grande Valsa. 
      VI - Valsa Gato Preto. 
      VII - Variação da Ópera Sonâmbula, no clarinete. 
      VIII - Polka. 

      Da mesma forma o 11° Batalhão de Infantaria, que, presente em outras ocasiões, brindou com “Valsa da Esperança”, “Valsa Paula Castro”, “Ermelinda Polka” e “Fantasia Moisés”. 

      O Povo Coçando a Cabeça 


      Foto ao lado - Parque da Independência (Verdes Mares, 1932). Acervo Lucas 

      No dia 31 de outubro de 1890, a Secretaria do Conselho de Intendência Municipal publicou polêmica resolução com mudanças radicais, como nomes de praças, entre as quais a Dr. José Júlio no lugar da Praça da Liberdade (Coração de Jesus). José Júlio Albuquerque, sobralense, antigo interventor federal. A Praça do Mercado, antiga Carolina (atual Waldemar Falcão) passou a José de Alencar; Marquez do Herval a do Patrocínio (atual José de Alencar), e a gloriosa Praça do Ferreira no lugar de Praça Municipal, outrora Pedro II, entre outras. 


      Foto ao lado - Festa da criançada em 1939 (Unitário). Acervo Lucas 

      Mas o interessante foi a alternativa encontrada para driblar as constantes alterações nos nomes dos logradouros. Conforme o Artigo 1°: “Fica suprimida a denominação existente das ruas da cidade e substituída por numeração pela forma assim denominada: da Rua Formosa (Br. Do Rio Branco) para o nascente todas as ruas serão ímpares, e para o poente pares”

      Desse modo, a Rua Formosa passou a se chamar N° 1, a Major FacundoN° 3 e a Rua da Boa Vista (Floriano Peixoto) N° 5, assim como a Senador PompeuN° 2 e General Sampaio/Visconde de Cahuype (Av. da Universidade) N° 4. Não vingou por muito tempo. 

      Parque da Independência 


      Foto ao lado: A fachada com o índio. Arquivo Nirez

      Durante o governo de Justiniano de Serpa e do intendente (prefeito) Ildefonso Albano, em 1922, lembrando o centenário da independência, o Parque da Liberdade passou a se chamar Parque da Independência. Na ocasião, foi fixada na entrada, sobre o portão, a imagem do índio se libertando, quebrando a corrente. 
      1934. O interventor federal Carneiro de Mendonça fez o projeto da Cidade da Criança, tendo o seu sucessor, Meneses Pimentel, professor de carreira, dotado verbas que a viabilizaram, sendo a sua instalação em 1936. Assim, no dia 26 de maio de 1937, o intendente Raymundo de Alencar Araripe e o interventor Meneses Pimentel, durante as comemorações pelos dois anos das suas administrações, inauguraram a Cidade da Criança, ainda que oficialmente permanecesse Parque da Independência pelo conjunto. 


      Aulas de balé na escolinha Alba Frota. (O Estado, 1949). Acervo Lucas

      Como novidades quatro modernas construções, abrigando uma inovadora escola para crianças de 3 a 13 anos, iniciando com 150 alunos. Num pavilhão remodelado surgiram a biblioteca e a cantina, enquanto em outro os banheiros com chuvisco. No terceiro pavilhão ficou o Jardim de Infância, onde se ensinava canto, balé, penetrando no desenvolvimento das artes. Ao lado deles os parques de diversões com balanços e deslizadores. Lembrando também as inovações charmosas, como a Gruta dos Amores e a Gruta do Cupido. Aos cuidados da diretora Zilda Martins Rodrigues, educadora renomada e escritora. As professoras, como Isaura Araújo, Francisca Pedreira, Erzila Mendonça, Elizabeth Osório e Diva Moura, no entanto, já reclamavam do pequeno espaço dos prédios e de carências de materiais. 
      No ano seguinte, Raymundo de Alencar Araripe criou, segundo o Decreto 367 de 28 de janeiro, o Serviço de Educação Infantil, à frente o secretário Hugo Catunda, outra diretora, Alba Frota e de sua auxiliar Ailza Ferreira Costa, fortalecendo o ensino pedagógico com orientação sociológica e elevando a idade dos alunos até 15 anos. No Parque de Brinquedos, no complexo do Parque Recreio, foram adicionados olas, gangorras e deslizadores, alem de serviço de vigilância a cargo de três mulheres. Em 1939 já contava com 409 alunos e expandia os jardins, dispondo de sala de projeções, ao passo que em 1940 foi inaugurado o restaurante. 

      A Volta do Parque da Liberdade 


      Restaurador Augusto Cezar Telles Marinho (Tribuna do Ceará, 1977). Acervo Lucas 

      Em 1948, entretanto, a Lei 84, publicada em 22 de outubro, durante a gestão municipal de Acrísio Moreira da Rocha, restaurou-se a denominação Parque da Liberdade, desaparecendo Parque da Independência. Uma medida que nunca neutralizou o apego popular, permanecendo até hoje o costume popular à Cidade da Criança. Numa realização aplaudida durante administração do prefeito Evandro Ayres de Moura, em 1977, ocorreu a restauração das imagens da Cidade da Criança comandada pelo escultor Augusto Cezar Telles Marinho. Diante dos sacrifícios, como subir uma escada de onze metros cedida pelo Corpo de Bombeiros, o artista honrou o seu talento, dando à imagem do índio a sua característica de origem, que embora verde foi decidido pelo restaurador mudar para marrom. Assim o fez com o cupido, feito de mármore, com o arco e as asas; a criança Inocência, a mãe e o casal de crianças, fundidas em bronze, nas suas cores naturais, vindas de Milão, Itália


      1938 com a velha Igreja do Coração de Jesus (Foto M. Guilherme). Acervo Lucas

      Após a desativação da escola, funcionou no local a Fundação da Criança e da Família Cidadã (FUNCI), ligada à prefeitura. Atualmente em obras de drenagem, com muro ao chão, serve de apoio aos serviços no entorno do Centro, como a Guarda Municipal. Aguardamos maior valorização daquele símbolo de Fortaleza, que ostenta, numa área de 26.717 metros quadrados, o carinho e a paixão do cearense, das vítimas das secas aos mais abastados. Carece, e urge, de exploração e de direitos voltados à sociedade, em particular àquela que lhe empresta o nome, a criança."
                                                                                                                 J. Lucas Jr 
      (Escritor, professor e bancário)


      Fontes: Jornais O Cearense, O Estado e Tribuna do Ceará.


      Fortaleza antiga - Rivalidade no transporte coletivo na década de 20 (Parte III)

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      3º Round

      Assentamento dos trilhos dos bondes elétrico na rua Guilherme Rocha em 1913. Acervo Ary Bezerra Leite

      Em 1927, Fortaleza adquiria um sistema de avenidas que faziam importantes ligações na cidade como pontos que ligavam o centro da cidade, o Palácio do Governoe a Assembleia Legislativa. Para melhorar a estrutura urbana e principalmente na parte estética, o prefeito de Fortaleza Álvaro Weyne (1928-1930) exigiu a mudança de antigos combustores das praças por lâmpadas da marca Littleton, que era utilizada nas melhores cidades do mundo.

      No entanto, ainda na década de 20, as ações das autoridades públicas eram modestas.
      Pautavam-se em pequenas reformas, especialmente na parte central da cidade. 

      Nogueira¹ relata que uma atitude exercida pela municipalidade foi retirar a árvore denominada Oitizeiro do Rosárioda via urbana de Fortaleza e os relatos de vários memorialistas descontentes com essa atuação:
      Todavia justificativa presumida para o abatimento do Oitizeiro do Rosário 

      repousava na intensificação do tráfego urbano, o que era confirmado pelo crescente número de automóveis que transitavam pelas ruas da cidade. A árvore erguia-se em uma via central – a um passo da Praça do Ferreira, ponto irradiante de veículos, onde
      automóveis de aluguel estacionavam e passavam linhas de bondes.

      O texto nos informa que algumas atitudes estavam sendo praticadas pelo poder municipal, entretanto não podemos considerar uma grande mudança, ou amplas reformas para o perfil urbano. O investimento no final do ano de 1929 para a circulação de veículos limitava-se, nesse caso, a uma simples retirada de uma árvore, fato muito insignificante para uma cidade que visava crescer. E no mesmo ano de 1929, Fortaleza era portadora de um calçamento totalmente impróprio para a circulação de veículos.

      Porém mesmo com algumas mudanças ocorrendo na década de 1920, não podemos ainda considerar este o período de profundas transformações na capital. Como nos apresenta
      Ary Bezerra Leite: “Na década de 1920, há relativo progresso, mas é nos anos de 30 que ocorre a expansão territorial, rompendo o zoneamento primitivo para buscar novas áreas de crescimento.”

      Ratificamos esse pensamento com as afirmações do pesquisador Liberal de Castro. Para este autor, Fortaleza, na virada do século XX, podia ser considerada um aglomerado urbano ainda modesto. Em 1920, o censo da cidade apontava esta com uma população de 78.000 habitantes. A ponto de Liberal de Castro se referir à cidade chamando esta de “cidadezinha”, o que reflete sua opinião de que Fortaleza não atingia um índice de desenvolvimento urbano ampliado ainda na década de 1920.

      Vemos um Bonde de tração animal na Prainha (Praia de Iracema-Rua Almirante Jaceguaí) em fevereiro de 1913.  À direita podemos observar a torre da casa de José Pio de Freitas, que dali observava os navios do Lloyde Brasileiro, para o qual trabalhava. Depois foi vendida para o engenheiro da estrada de ferro Mister Hull, que fez da bela vista um observatório astronômico. A casa ficava no terreno onde hoje temos o Centro Dragão do Mar. (Foto Brun) - Acervo Lucas

      Foto ao lado: Filhas e sobrinhas do empresário Alfredo Salgado numa tour pela cidade. Passeio de bonde de tração animal. Foto de 1913 de Jacob Nogueira. Acervo Lucas 

      A estruturação do monopólio


      Se Fortaleza caminhava na década de 1920 de maneira “devagar e arrumadamente”, as transformações no transporte coletivo no final desta década não caminhavam nesse mesmo ritmo, de maneira amistosa ou pacífica. Esse mercado de transporte foi alvo de disputas e conflitos, especialmente entre a empresa britânica, detentora do serviço de iluminação elétrica e transporte por bondes elétricos, The Ceará Tramway and Light Power, com os primeiros empresários de ônibus que também tencionavam adquirir um pedaço dessa fatia lucrativa, no final da década de 20.

      A grande questão era que o serviço de transporte coletivo em Fortaleza sempre foi pensado e realizado através de uma prática de concessões e privilégios. Ou seja, a empresa atuou por vários anos realizando suas atividades com a prerrogativa de monopólio do serviço de transporte coletivo por bondes elétricos, que, na prática, significava um controle sobre todo o sistema, haja vista que até a década de 20, ainda não havia ônibus fazendo esse tipo de trabalho regularmente. Em outras palavras, a empresa britânica gozava de privilégios do tráfego de carros elétricos na área urbana de Fortaleza, privilégio este que chegava a 75 anos.

      O monopólio que a Light adquiriu viera de práticas exercidas pela municipalidade desde o século XIX, que repassava a particulares concessões de longos anos para atuar sobre alguns serviços. No trabalho com bondes elétricos, a responsabilidade ficou com essa empresa. Isso significa que o monopólio adquirido pela empresa foi um conjunto de concessões que esta conseguiu contrair com a compra de outras empresas que faziam esse serviço e eram beneficiadas com essa prática. Devido a esse longo período de concessão e privilégios, a instituição não via com bons olhos a chegada de novos veículos como os ônibus, que certamente iriam fazer concorrência e disputar passageiros, transformando-se, assim, em opositores perigosos para os lucros da companhia britânica no setor de transporte coletivo.

      As longas concessões cedidas pelas autoridades públicas, que se transformaram em um monopólio do setor com o advento da Light, foram as grandes dificuldades que os novos empresários de ônibus tiveram que enfrentar e, por outro lado, este tipo de situação foi a principal luta pela qual a empresa defendeu para continuar. No cenário que perpassou o final do século XIX para o século XX, três empresas locais adquiriram concessões em troca da instalação de trilhos para a transição de bondes com força animal em algumas ruas de Fortaleza. Maior destaque se dá à companhia Ferro Carril do Ceará, que atuou desde 1880 até 1912, quando foi adquirida pela empresa Ceará Light, ficando esta última responsável pela manutenção do transporte nas linhas adquiridas pela antiga “Ferro Carril do Ceará”.

      Passe de bonde em 1945. Acervo de Clóvis Acário Maciel

      Nessa perspectiva, outras duas empresas, na década de 1890, adquiriram também concessões para conseguirem transitar em Fortaleza. A segunda empresa a ser formada foi a Companhia Ferro Carril de Porangaba², em 1894, transitando no percurso Benfica-Damas-Parangaba e teve sua atuação exercida até o ano de 1918. Em 1896, surgiu a última empresa de bondes com tração animal denominada Companhia Ferro Carril do Outeiro³, que teve sua atuação até o ano de 1912, quando foi comprada pela empresa inglesa de bondes elétricos, uma vez que já pertencia à “Companhia Ferro Carril do Ceará” desde 1898. O itinerário da terceira empresa começava na Praça do Ferreira, Praças General Tibúrcio (conhecida como Praça dos Leões), José de Alencar, atravessava a Praça Caio Prado (Praça da Sé), seguia pela Praça Figueira Mello, rua Gustavo Sampaio, até a Praça Benjamin Constant (Praça da Bandeira), que significava um percurso de 1.550 metros.

      A partir desses fatores, podemos entender que o serviço de transporte coletivo em Fortaleza foi estruturado da seguinte maneira: a cidade era fatiada para alguns empresários que investiam no setor de bondes, sendo repassado a esses capitalistas as concessões. Cada empresa tinha sua área de atuação, cuja circulação nas linhas era de privilégio da portadora da concessão.

      Não, nesse sentido, havia espaço para uma concorrência entre empresas em uma mesma linha, já que cada uma era detentora de uma linha em que somente a concessionária podia atuar. Em uma cidade em que as empresas locais Ferro Carril do Ceará, Ferro Carril do Outeiro e Ferro Carril de Porangaba tinham essas concessões, como poderia a Light entrar nesse mercado? A empresa inglesa não podia disputar através da concorrência, restando uma alternativa para os ingleses, que era comprar a propriedade das empresas de bondes locais para atuar, e foi exatamente isso que fizeram. Com a compra das empresas Ferro Carril do Ceará e Ferro Carril do Outeiro, e a falência da Ferro Carril de Porangaba, em 1918, a Light passava a ser a única empresa detentora de concessões nas linhas urbanas, o que outorgava a esta um monopólio de transporte coletivo de bondes.

      A nossa análise para entender a opção tomada pelas autoridades públicas em ceder as concessões com privilégios de tempo e sem concorrência para alguns grupos, é que o governo municipal não estava interessado em investir na construção de calçamentos e implantação de trilhos de bondes, deixando isso para a iniciativa privada, que por outro lado era recompensada com o uso exclusivo desses trilhos por um determinado tempo.

      O funcionamento dos serviços urbanos também envolvia a iniciativa privada como agente ou beneficiária de algumas atividades básicas, sempre a usufruir de um protecionismo concedido pelos agentes governamentais em detrimento dos interesses coletivos. 


      Para a construção desse serviço, as autoridades públicas se valeram de todo um arcabouço legislativo para colocar em atividade o serviço de transporte coletivo. Nesse sentido, a atuação das autoridades públicas se reportaria à fiscalização e à distribuição de concessão, enquanto a iniciativa privada realizaria as obras necessárias de infraestrutura.

      Fortaleza compartilhou, no começo do século XX, situações parecidas com o que estava ocorrendo em parte nas grandes cidades do Brasil. O crescimento urbano demandou
      investimentos na distribuição de água, iluminação e energia. No Brasil, inicialmente, a
      prestação desses serviços ficou a cargo de pequenas empresas de âmbito municipal. Todavia,
      o tempo de atuação dessas empresas não teve uma longa escala. Devido ao crescimento de
      empresas internacionais, principalmente no que se refere à produção de materiais elétricos e distribuição de eletricidade, algumas empresas multinacionais assumiram o controle do mercado latino-americano. Na capital do Ceará esse processo teve origem em 1870, data em que foi sancionada a Lei nº 1382, concedendo um privilégio de 50 anos no contrato para Estevão José de AlmeidaFirmino Cândido de Figueiredo, Antonio Pinheiro da Palma e José Joaquim de Sousa Assunção, que ficariam encarregados de montarem os alicerces do serviço de transporte pautado no bonde com tração animal. Logo, demais leis foram sendo efetivadas e resultariam, em pouco tempo, em uma configuração concreta dos estatutos da Companhia Ferro Carril do Ceará, como a Lei Provincial nº 144 de 11 de outubro de 1871, que repassou a Estevão José de Almeida os direitos para colocação de trilhos de ferro nas ruas da cidade, com um ramal paraMecejana.

      A transferência desses direito foi efetivada aos negociantes Francisco Coelho da Fonseca e Alfredo Henrique Garcia. A Lei 1382, de dezembro de 1870, concedeu esse privilégio a Estevão José de Almeida (Lei Provincial nº 1631 de 05 de setembro de 1874) que se efetuou no contrato de 28 de agosto de 1875. O resultado do conjunto dessas leis levaria à aprovação dos primeiros estatutos da “Companhia Ferro Carril do Ceará” com o Decreto Imperial nº 5110, de 09 de outubro de 1872, e que seria ratificado com o Decreto Imperial, assinado pela princesa Isabel com o nº 6620, de 04 de julho de 1877:

      Art. 1º Fica organizada uma sociedade anonyma que se denominará Companhia ferro-carril do Ceará, cujo fim é construir linhas de carris de ferro nas ruas da cidade de Fortaleza, capital a Província do Ceará, e mais uma linha que ligue a dita capital à povoação de Mecejana.
      Art. 2ºÀ Companhia ficam pertencendo todos os direitos e privilégios, que aos contractadores, Francisco Coelho da Fonseca e Alfredo Henrique Garcia, foram
      concedidos do dito contracto, de conformidade com a Lei provincial do Ceará nº1631 de 5 de Setembro de 1874 e outros que de futura venha a adquirir.
      Art3º Pela cessão do privilégio com todas as suas vantagens, incorporação da companhia, etc. receberão os cessionários como indenização uma comissão de 10% sobre o capital, que vier a ter a Companhia, destinado à execução de todas as suas obras até Mecejana, em ações consideradas inteiramente pagas.
      Art. 4º A companhia terá sua sede e direção geral na cidade da Fortaleza.

      Art. 5º A duração da companhia será de 50 annos contados da data da approvação destes estatutos, prazo este prorrogável mediante deliberação da assembléia geral de accionistas para isso convocada e autorização do Governo Imperial.


      Decreto Imperial nº 6620 de 04 de julho de 1877

      Rua Formosa, Barão do Rio Branco, em 1908. Bonde da Companhia Ferro Carril. 
      Acervo Cepimar

      Esta imagem refere-se ao bonde de tração elétrica em Fortaleza, circulando em uma das principais ruas da cidade nesse período. No ano em questão, a empresa de bonde Ferro Carril do Ceará tinha o maior número de linhas na cidade de Fortaleza. Com a configuração do estatuto da Companhia Ferro Carril do Ceará, percebemos como a concessão de privilégios foi sendo repassada juntamente com a construção do sistema de transporte coletivo. Essa primeira empresa teve privilégios que a vincularam a uma concessão de tempo de meio século para realizar suas atividades de uma maneira isenta de concorrência dentro de suas linhas, cujo material seria repassado à municipalidade. Não bastasse essa facilidade, o grupo que pretendeu investir no transporte coletivo também foi privilegiado por outras  prerrogativas das autoridades públicas. Isso foi confirmado quando o Doutor José Júlio de Albuquerque Barros, Presidente da Província do Ceará “Concede isenção de direitos para a Companhia Ferro Carril do Ceará” (
      Lei Provincial nº1852 de 02 de outubro de 1879).

      ¹Carlos Eduardo Vasconcelos Nogueira - Dissertação (mestrado) em História Social. Universidade Federal do Ceará, 2006.p.19. Tempo, progresso, memória : um olhar para o passado na Fortaleza dos anos trinta. 

      ²A segunda Companhia de Bonde a se fundir foi a da Companhia Ferro-Carril de Porangaba, de propriedade de Gondim e filhos, dirigida pelo Cel. Arlindo Gondim, fundada em 10 de outubro de 1894. Vinha de Parangaba onde era a sua Estação e parava no fim da linha de Bondes do Benfica, defronte do Café do Eugênio, junto ao muro da Chácara das Amarais, onde do lado de fora existia um grande tanque com água para os animais dos bondes e dos comboieiros. A linha servia os bairros das Damas e de Parangaba. In: BEZERRA DE MENEZES, Antonio. Descrição da cidade de Fortaleza. Fortaleza: UFC/Casa de José de Alencar, 1992. p.194.

      ³A terceira Companhia foi a Ferro-Carril do Outeiro, fundada em 1896; o assentamento dos trilhos se iniciou em 13 de maio e foi inaugurada em 12 de outubro do mesmo ano de 1896. Era propriedade de membros da família Acioly. Sua Estação se localizava um pouco além da atual Rua Gonçalves Ledo, antiga Rua do Guariju e em seu local foi construído o prédio residencial do Dr. Aderbal Freire. Eram servidos dois bairros, o do Outeiro e da Aldeota. O bonde do Outeiro partia da Praça do Ferreiraàs horas certas e atingia até a frente do prédio que foi construído na seca de 1877 e se destinava a um asilo de mendicidade; em 1902 foi alugado para um Colégio de moças sob a direção da grande educadora e professora Ana Bilhar, que, mediante contrato com Governador Pedro Borges, o alugou com o prazo de nove anos, mediante o aluguel mensal de 150$000. "Suas alunas só trajavam verde e por isso eram apelidadas de periquitinhos verdes; hoje o prédio é ocupado pelo Colégio Militar. (Nota de Fernando Lima). IN: BEZERRA DE MENEZES, Antônio. op. cit., p.194.

      Crédito: MANOEL PAULINO SECUNDINO NETO ( “Light 'versus' Ribeiro & Pedreira”)

      Veja também:
      Parte I
      Parte II

      Fontes: CASTRO. José Liberal de. Arquitetura eclética no Ceará. In: Annateresa Fabris (org.) Ecletismo na Arquitetura Brasileira. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo: 1988. p.220 – 230./ LEITE, Ary Bezerra. História da Energia no Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1996. P.51./CASTRO, José Liberal de. Fatores de Localização e de Expansão da Cidade de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade de Fortaleza, 1977. p.35. /Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1918, confeccionado por João da Câmara. Fortaleza: Empreza Tipographica, 1918. p.197. / Almanach Administrativo, Estatístico, Industrial e Literário do Estado do Ceará para o ano de 1918,
      confeccionado por João da Camara. Fortaleza: Empreza Tipographica, 1899. p.107./
      JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Verso e Reverso do Perfil Urbano de Fortaleza (1945 – 1960). São Paulo: Annablume, 2000p.111. / SAES, Alexandre Macchione. Conflitos do Capital: Light versus CBEE na formação do capitalismo brasileiro (1898-1927). Tese(doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia, 2008. p.51./ NOBRE, Geraldo. Ceará: energia e progresso. Secretaria de Cultura e Desporto. Imprensa Oficial do Ceará.
      Fortaleza, 1981. p. 103./ 

      Fortaleza antiga - Rivalidade no transporte coletivo na década de 20 (Parte IV)

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      4º Round


      "Art.1º Fica o Presidente da Província autorizado a conceder à Companhia Carril,  a garantia de juros de 7% ao anno sobre o capital despendido ou que vier a despender na construcção de linhas de carris de ferro nas ruas da capital e da linha férrea para Mecejana, até a somma de tresentos contos de réis.
      Art.2º A garantia de juros será por espaço de vinte annos, e começará do dia em que for aberta ao trafego qualquer linha ou secção da linha."

      (Lei Provincial nº 1967 de 17 junho de 1882)

      Resultado de imagem para Ferro Carril do Ceará
      Como vimos, além de todos os benefícios e facilidades, a empresa Ferro Carril do Ceará ainda desfrutou da chamada “garantia de juros” delimitadas na Lei nº 1967 de 1882.
      Essa garantia de juros era um resguardo para o capital do empresário que era investido.
      À Ferro Carril foi concedido uma garantia de juros de 7%, significando, assim, que, quando a empresa aplicasse seus dividendos na construção, reforma e exploração dos trilhos e, por ventura não obtivesse o lucro de 7% sobre o valor anual do seu capital, os sócios proprietários poderiam procurar o governo, que se responsabilizava por ressarcir a sua diferença. Em outras palavras, o governo adotava uma política de dar aos investidores uma segurança na aplicação do capital investido, que de certa forma seria revertido aos cofres da empresa. Se o prazo de concessão era de 50 anos, e as garantias de juros eram de 20, isso significava que em quase metade dos anos de trabalho da empresa essa não teria despesas no quadro do seu investimento.


      Reminiscências... 
      A Vassoura: Orgão da limpeza da rua e dos bolços (Ce) - 1898

      A relação da companhia de bondes com as autoridades públicas não se limitou ao transporte de passageiros. Em decorrência do precário serviço de circulação de veículos, a Câmara Municipal assinou um convênio com a Ferro Carril, para que esta conduzisse as carnes verdes do matadouro aomercado público da cidade (Lei Provincial nº 17 de 12 de agosto de 1880)Esta foi mais uma iniciativa que facilitou o trabalho da empresa, assim como aumentou os seus ganhos e, em contrapartida mais uma vez aliviava a prefeitura municipal de Fortaleza de não ficar responsável pela condução dessa mercadoria.
      É interessante perceber que a lei exposta, uma lei provincial, aprovou um contrato feito entre a Câmara Municipal com a Ferro Carril. Esse transporte coletivo, mesmo que fosse relativo a Fortaleza, era regularizado e controlado pelo poder público Provincial. Ou seja, para a Câmara Municipal tentar impor ou regularizar alguma medida referente ao serviço de transporte de tração animal, esta precisava da condescendência da Assembleia Legislativa Provincial do Ceará. Essa situação sofreu mudanças em alguns quesitos, quando o Governo Estadual se absteve da responsabilidade de fiscalizar as empresas de bondes e transferiu essa responsabilidade aos órgãos municipais “transferindo à Intendência Municipal de Fortaleza a fiscalização da Companhia Ferro Carril do Ceará”. (Decreto nº 151 de 30 de janeiro de 1891).

      Bondes de tração animal. Foto do livro Impressões do Brasil início do séc. XX

      As relações entre governo e Ferro Carril, nem sempre foram tão harmoniosas. Isso devido às quebras de compromissos firmados com a empresa desde o contrato inicial de 1875. Dentre os atritos que começaram a ocorrer entre poder público e poder privado estava a não conclusão das obras da linha de carris de Mecejana. Além disso, refletia-se bastante nessa divergência o mau estado em que estavam conservadas as linhas e o material rodante (herança que a futura empresa que iria trabalhar no transporte de bondes, Light, também iria adotar e seria causa de desavenças tanto por parte do poder público, quanto por parte dos usuários). Essas desavenças levariam o poder público a se posicionar de uma maneira mais enérgica em relação à Ferro Carril do Ceará, tanto que o senhor Cezidio d’Albuquerque Martins Pereira, “Director de Secção da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior”propôs uma lei em que o Presidente do Estado ficasse autorizado a rever o contrato celebrado, em 28 de Agosto de 1875, mediante as seguintes bases:


      Praso do privilegio «o mesmo das leis e contractos respectivos»;
      Reversão para a municipalidade de todas as linhas construidas e materiaes dellas, findo o praso;
      Dispensa de prolongar a companhia uma das linhas até Mecejana, ficando, porém obrigado a prolongar a linha da estação até a extrema do municipio da capital;
      Faculdade para reduzir a bitola das linhas existentes, augmentando o numero das viagens;
      Delimitar a area privilegiada ao perimetro das ruas que existiam edificadas no tempo da primitiva concessão, respeitando-se igualmente as mesmas linhas cujos traçados já estejam approvados.
      Lei Estadual nº 116 de 23 de setembro de 1893

      Reminiscências... Jornal O Cearense de 1º de novembro de 1879 

      De todas as imposições que se materializaram na lei, a que tem grande importância para a construção do nosso trabalho se encontra no art 2º. Conforme esse artigo, o poder público mandava um recado para a empresa Ferro Carril de que ao terminar o prazo de concessão todo o seu material de trilhos seria revertido à municipalidade. Não podemos esquecer que a próxima empresa que comprará as ações da companhia Ferro Carril será a empresa inglesa Light, que herdará todos os privilégios da companhia de bondes à tração animal, entretanto, as imposições serão também herdadas.
      Isso pode ser a causa da explicação dos grandes problemas que ocorreu no setor do transporte em relação aos investimentos não realizados pelas empresas concessionárias. Pois qual o sentido de se investir demasiadamente em um setor, se ao final do término do contrato, todo o seu material seria repassado para o governo municipal?Qual o interesse de um investidor privado em proporcionar melhorias na estrutura de seu negócio, cedendo um bom serviço, se ele vai perdê-lo? Isso foi comprovado com o passar dos anos, especialmente quando a Light era a portadora da concessão, que quanto mais o tempo passava e chegava próximo ao final de seu contrato (década de 1940), menos investimentos eram apresentados pela empresa.


      Reminiscências - Jornal A República.

      Essa prática da entrega dos trilhos para a municipalidade também foi meta geral pretendida pelo Estado em relação às empresas que visavam trabalhar com bondes de veículos de tração elétrica, tanto na capital do Ceará quanto nas regiões adjacentes e em cidades do interior, como foi autorizada às Câmaras Municipais das cidades de Porangaba, Mecejana, Soure, Redenção, Iguatú, Icó e Aracati a conceder privilégios para a instalação de trilhos desde que:“Os privilégios não poderão exceder de 25 annos e serão concedidos sem ônus para os municípios ou indemnização de qualquer espécies, devendo todo o material fixo e rodante reverter para a respectivas câmaras, findos os prazos estipulados”. (Lei Estadual nº 43, de 28 de agosto de 1911).

      É importante frisar uma constatação: o sistema de transporte coletivo em Fortaleza não foi criado em um determinado momento ou por um único ato. Ele foi marcado por sucessivas leis e determinações que iam tentando moldar ou agilizar sua construção. O que tanto a empresa Ferro Carril, como depois a Light tiveram foi uma abertura das autoridades públicas que foram determinantes para alavancar a atuação dessas empresas, através de longos prazos de concessão e em ajuda para o caixa das empresas, como exemplo as isenções de impostos à empresa “Ferro Carril do Ceará”. (Lei Estadual n° 663, de 26 de agosto de 1901).


      <- span="">Reminiscências - Jornal O Ceará 14/09/1928.->

      A Companhia Ferro Carril do Ceará passou às mãos dos empresários ingleses após algumas transações de vendas com grupos locais: o grupo J. Pontes & Cia, cujos sócios eram Thomé Augusto Mota, João Pontes de Medeiros e Solón Costa e Silva, que foi proprietário da empresa entre 1898 e 1905. De 1906 a 1912 a empresa passou ao grupo T.A. Motta & Cia, de propriedade dos sócios Thomé A. da Mota e Solón Costa e Silva. Em 1907, quando a Ferro Carril pertencia ao capitalista Tomé Augusto da Mota, a Secretaria do Estado dos Negócios do Interior concedeu-lhe mais um privilégio, visando dotar a cidade de Fortaleza em pouco tempo de um serviço de transporte mais dinâmico com força motriz elétrica. Perante a Lei nº 916, o poder público estadual autorizava a concessão para estabelecimento, uso e gozo de uma usina geradora de energia elétrica.
      O privilégio da empresa Ferro Carril ainda fora ampliado, a partir de uma rodada de negociações, que levou a reformas das condições contratuais. A grande vitória da empresa foi conseguir prorrogar por trinta e cinco anos o prazo do seu privilégio na distribuição do transporte coletivo. Mas para ser merecedora dessa prorrogação, a empresa de bondes deveria substituir a tração animal pela elétrica (Lei Estadual n° 1008, de 19 de agosto de 1910)
      Tal imposição acarretou a venda da Ferro Carril para empresários ingleses que tinham condições de efetivar o oneroso serviço de implantação da eletricidade em Fortaleza. Isso ocorreu quatro meses depois com a venda da Ferro Carril para City Improvements Co Ltda que, em pouco tempo, construiria a Ceará Light, em 1912, para operar o serviço de transporte coletivo servido por bondes de tração elétrica.


      Posto Central da Ferro Carril, na praça do Ferreira, logo após sua transferência para a Light
      (1912). – Acervo Cepimar

      Nessa imagem, encontramos o ponto central onde os bondes da empresa Ferro Carril do Ceará tinham seu ponto de partida, sempre saindo do coração da cidade. Quando esta passa para a empresa inglesa, o posto central ainda continua na Praça do Ferreira. É importante salientar que a Light, com a compra dos aditivos da Ferro Carril, passou a cumprir com as demandas dos contratos que pertenciam à empresa de bondes de tração animal. Neste sentido, a empresa britânica tanto recebia os privilégios oriundos de contratos anteriores, quanto estava submetida a todo um “jogo” de regras e cumprimento de determinadas imposições por autoridades fiscalizadoras da cidade. Dentre outros aspectos, a Light estava se enquadrando no serviço de transporte sob a suprema inspeção do Secretário da Justiça e Segurança Pública, vinculada a uma Inspetoria de Veículos em que o Delegado de Polícia estava encarregado da matrícula e da fiscalização dos veículos.

      Crédito: MANOEL PAULINO SECUNDINO NETO ( “Light 'versus' Ribeiro & Pedreira”)

      Veja também:
      Parte I
      Parte II
      Parte III

      Recortes de jornais: Biblioteca Nacional/Digital Brasil

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